Tema e datas do Colóquio de 2019

Poéticas (d)e Internacionalização
23, 24 e 25 de outubro de 2019
UFRGS — Porto Alegre 


O VIII Colóquio Sul de Literatura Comparada 2019 — Poéticas (d)e Internacionalização, a ser realizado nos dias 23, 24 e 25 de outubro de 2019, em Porto Alegre, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, propõe buscar na reflexão sobre o literário novas formas de descrever e pensar o fenômeno da mundialização para além da técnica e o do utilitarismo. A literatura desempenhou importante papel tanto na construção da ideia de nação quanto da ideia de um mundo sem fronteiras. As poéticas associadas a esses movimentos podem nos servir como guias, no sentido de imaginar e propor um mundo no qual o papel da universidade, da cultura e da comunidade internacional contribuam para uma maior integração e colaboração entre seus diversos elementos e grupos.

Historicamente, a palavra-chave “internacionalização” assume diversos significados e implicações acadêmicas e ideológicas em diferentes contextos. Do ponto de vista estritamente técnico, ela tem sido usada como índice de uma série de políticas governamentais, visando uma maior integração entre as instituições de ensino superior brasileiras e as de outros países. Essas políticas e metas se manifestam de diversas formas, como a promoção do ensino de línguas estrangeiras, a mobilidade acadêmica, o oferecimento de disciplinas em outras línguas, a organização de eventos internacionais, o acolhimento de estudantes de outros países, o envio de estudantes e professores para estudo em instituições fora do Brasil, dentre outros.

No entanto, o termo “internacionalização” transcende essa definição institucional. Ele pertence a um campo semântico mais diversificado e, dependendo da narrativa em que se insere, pode ter associações bem mais abrangentes. As palavras-chave relacionadas à mesma temática — entre outras, cosmopolitismo, pacifismo, integração, interdependência, transarealidade, transnacionalismo, globalização, mundialização, “república mundial das letras”, “paz perpétua”, “sem fronteiras”, etc. — refletem diferentes ênfases e interesses. O termo “globalização”, por exemplo, é muitas vezes utilizado para descrever “o proceso de aumento do fluxo de pessoas, culturas, ideias, valores, conhecimento, tecnologia e riqueza entre fronteiras, resultando em um mundo mais interconectado e interdependente” (KNIGHT, 2008, p. x).

A questão da globalização, como fenômeno, ameaça, ou desiderata, dependendo de quem a aborda, adquire especial urgência em nosso momento histórico, no qual a alteridade se torna “cada vez mais presente”, segundo Palumbo-Liu, para quem “esse influxo caudaloso de alteridade, novo tanto quantitativa como qualitativamente, é uma característica especial do final do século XX e do início do XXI — a era da globalização” (2012, p. 2). A literatura estaria bem equipada para nos indicar meios e propostas frente ao fluxo intensificado de outros e de diferenças; e caberia à Literatura Comparada a missão de elencar, enxergar, visibilizar e traduzir essas novas presenças e funções do literário. Mais que nunca, está exposta a contradição intrínseca a esse estado de coisas (ou a esse projeto):
Como é que, ao mesmo tempo, nós facilitamos a transferência e mobilização de corpos [...] para além de nossas fronteiras (para satisfazer nossas necessidades de mão-de-obra [...], e mesmo para assegurar nossa sobrevivência), e criamos muros e barreiras para impedir fluxos autônomos de corpos através dessas mesmas fronteiras? (PALUMBO-LIU, 2012, p. 5)
A globalização é vista, em áreas como a Economia, por exemplo, como algo benéfico; em outras, como a dos estudos pós-colonialistas, é frequente a denúncia da globalização como um instrumento atualizado do imperialismo das grandes potências. Nesse sentido, a “internacionalização” das instituições superiores pode ser vista como uma medida reativa às transformações sociais que estão postas — uma tentativa de adaptar a universidade aos novos tempos globalizados.

Por outro lado, a “internacionalização das universidades” pode mesmo ser vista como uma expressão redundante. A própria ideia de “universidade”, tida como uma comunidade de produção e transmissão de conhecimento, é, na sua origem, uma concepção transnacionalista e globalizada, seja em sua versão europeia medieval, seja nas primeiras universidades do mundo árabe, ou ainda nas “grandes escolas” da esfera civilizacional de matriz chinesa (que inclui a Coreia e o Japão). O fluxo de pessoas, textos e saberes nunca se ateve a fronteiras nacionais — e, inclusive, antecede a própria ideia de “nação”. As primeiras instituições de ensino superior já faziam uso de mecanismos tidos como “contemporâneos”, como o intercâmbio de estudantes, professores e pesquisadores; o uso de “línguas francas”; o compartilhamento interinstitucional de textos, métodos e instâncias associativas; e a crença em uma tradição comum, em uma base de conhecimento compartilhada, e numa produção científica “sem fronteiras”.

Da mesma forma, muitas literaturas têm caráter supranacional. Na Europa, o grego clássico, e em seguida o latim, eram os veículos de produções literárias que não conheciam fronteiras. As culturas semíticas possuem livros sagrados e seculares escritos em línguas estudadas para além do grupo que as utilizava. O mundo árabe, a civilização persa, o Império Otomano e a cultura eslava são também exemplos de comunidades de escrita que incluem falantes de muitos idiomas. O subcontinente indiano tem obras literárias canônicas que são lidas em diferentes comunidades linguísticas. A esfera civilizacional chinesa se baseia em uma escrita compartilhada que é compreendida e utilizada mesmo por autores que não falam a língua que os ideogramas inicialmente representavam. Essa escrita possui um repertório de poesia e de prosa que é lido e apreciado para além do círculo de regiões de fala chinesa.

Tanto as universidades como a literatura passaram, em concomitância com a ascensão do estado-nação, por processos de nacionalização, que afastaram a ideia de um conhecimento e de uma poética compartilhados por diferentes comunidades. A ideia de nação é, paradoxalmente, uma forma de globalização, pois pressupõe que todas as comunidades devem possuir um determinado número de elementos comuns e semelhantemente formatados: língua, história, mito de origem, folclore, ordenamento jurídico, marinha, exército, próceres, parlamento, representação consular, bandeira, hino, divisão em subunidades administrativas, sistema educacional, jornais, universidades, etc. A ideologia do nacionalismo torna indispensável a descrição de uma “cultura nacional”, que sirva como diferenciador de uma determinada comunidade em contraste a outras comunidades, e essa cultura inclui uma ideia de literatura nacional, em congruência com um território (cujas características internas são consideradas como homogêneas) e uma língua nacional, cujos cânones descritivos e normativos são preservados e transmitidos por um sistema de ensino e de universidades nacionais.

Acreditava-se que o conjunto das nações, ou, para usar um termo técnico do Direito, a “comunidade internacional”, seria uma forma de assegurar a paz — internamente, nos diferentes territórios nacionais, e, em seguida, em um nível mundial (ou ao menos multirregional). No entanto, o século XIX desmentiu essas expectativas, criando um sistema anárquico no qual os mais fortes anexaram os mais fracos, e as alianças se revelaram instáveis e destrutivas. É nesse contexto que os estudos de Literatura Comparada e de Relações Internacionais surgiram como disciplinas acadêmicas — entre o final do século XIX e o fim da Primeira Grande Guerra —, como tentativas de sistematizar o conhecimento humano sobre questões culturais e políticas relacionadas ao mundo — em oposição aos estudos, muito mais desenvolvidos à época, de questões culturais e políticas relacionadas a nações específicas.

Ainda que imperfeitas e subordinadas a visões de mundo eurocêntricas e limitadas, essas disciplinas representavam, em seu primeiro estágio de formação, um grande avanço, pois sugeriam haver traços em comum às literaturas do mundo (do lado da Literatura Comparada) e uma especificidade à maneira como os atores políticos se comportavam na esfera mundial (do lado das Relações Internacionais). No entanto, essas disciplinas não surgiram de um vácuo — elas são, na verdade, a consolidação acadêmica de estudos e obras literárias e analíticas que buscaram, ao longo dos séculos, compreender a experiência humana como um sistema não limitado a fronteiras civilizacionais ou culturais, e sempre em interação com outras unidades sociais mais ou menos distantes. As duas disciplinas se desenvolveram independentemente, mas guardam entre si muitas semelhanças e trajetórias teóricas e metodológicas comuns.

O paradigma do “nacional — que é uma língua — que é uma literatura” é o mesmo, tanto para a política como para os estudos literários mais ortodoxos. As tentativas teóricas de relativização, crítica e transcendência com relação ao modelo das unidades nacionais têm diversos pontos em comum nas duas disciplinas, com arcabouços teórico-críticos como o pós-estruturalismo e o feminismo fazendo aparições importantes em ambos os campos acadêmicos.

Neste início do século XXI, em que as teorias mais distanciadas de uma noção de “nacional” convivem com uma volta a cânones e fronteiras fechados em torno dessa mesma ideia, a Literatura Comparada apresenta-se como um lugar teórico (e uma práxis) onde as identidades atreladas a comunidades linguísticas, territoriais, históricas e étnicas são ao mesmo tempo reconhecidas e questionadas. O comparatismo apresenta, em seu DNA, uma atitude de abertura ao mundo e de expansão epistemológica e metodológica, promovendo interações disciplinares necessárias para a redefinição do que venha a ser o “nacional” e o “literário” — ousando mesmo perguntar se essa nomenclatura deve ser mantida, ou substituída por outros conceitos, análogos porém renovadores. O presente colóquio propõe um diálogo com outras disciplinas e concepções teóricas de “mundo”, visando à promoção de novos marcos reflexivos e interpolinizações, com o objetivo de refletir sobre o conceito de “internacionalização” e sobre as poéticas a ele associadas.


REFERÊNCIAS

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