Caderno de Resumos do VI Colóquio

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Caderno de Resumos

Sessão 1 — quarta-feira, 08/10, 11h30 às 13h, sala 205 (Prédio de aulas).
o   Diásporas, oralidade, escrita e leitura em cultos de matriz africana no Brasil — Rafael José dos Santos.
Este trabalho trata da introdução de registros escritos e da literatura religiosa nos cultos de matriz africana no Brasil. Em sua origem, a religiosidade de matriz africana e seus saberes, estavam associados à tradição oral transmitida dentro dos terreiros. Os saberes, ou, para usar uma categoria êmica, os fundamentos, abrangem domínios diversos: as ervas e suas utilizações, as narrativas mitológicas, os toques de atabaque, as cantigas, as cores relativas a cada divindade, a culinária ritualística, regras de conduta e de como movimentar-se no território de culto. Os fundamentos constituem um complexo conjunto de conhecimentos que passaram (e passam) por processos de significação e ressignificação devido às hibridações, desterritorializações e reterritorializações motivadas pelos processos de contatos interculturais, desde aqueles no próprio continente africano, passando pela diáspora promovida pelo tráfico escravagista, pelas migrações de membros dos cultos no interior do Brasil e, contemporaneamente, pela intensificação de viagens de sacerdotes entre o Brasil e a Costa Ocidental africana. Os fundamentos, originariamente transmitidos apenas pela oralidade associada à prática cotidiana, passaram, no decorrer do século XX, também ao registro escrito. O interesse de folcloristas e antropólogos pela religiosidade de matriz de matriz africana deu origem a trabalhos que passaram a circular também no meio religioso. Além disso, com o avanço da modernização, muitos adeptos recorreram ao registro dos fundamentos em cadernos como recurso mnemônico. Com a expansão e segmentação da indústria editorial, surgiram os manuais de divulgação produzidos por intelectuais não acadêmicos ligados aos cultos. Contemporaneamente, os diferentes conhecimentos religiosos de matriz africana circulam também em sites e blogs na Internet. Os registros escritos, contudo, não substituíram por completo o aprendizado dos adeptos através da transmissão oral e da prática ritual, modalidades compreendidas como de maior legitimidade no universo religioso de matriz africana.

o   A infância e seus traumas em António Lobo Antunes — Paula Renata Lucas Collares.
A infância é uma temática muito recorrente na obra de António Lobo Antunes. A crítica mais especializada aponta que a sua narração se articula através de três eixos temáticos: a guerra, a loucura e a infância. É possível dizer que infância aparece, desde o seu primeiro romance Memória de elefante (1979) até o último Não é meia noite quem quer (2012), como um espaço problemático quase sempre evocado através de uma memória repetitiva e repleta de lacunas, mas nunca recuperado em sua totalidade. Se realmente não há uma infância alegre, mas a sua recordação pode ser triste ou alegre, Lobo Antunes mostra que esse contar é sempre um invento e por isso está muito além do que de fato aconteceu. Diante de uma memória cheia de lacunas, em que não se sabe se os acontecimentos são verídicos, a própria organização do tempo da narrativa é fragmentada. Dessa forma, os momentos recordados são sempre selecionados mesmo que a nossa recordação do passado seja sempre parcial.  Este estudo pretende mostrar como a memória, como temática e procedimento narrativo, (des)organiza através da linguagem tempos vividos, imaginados e inventados. Principalmente, considerando que a memória em Lobo Antunes recupera insistentemente uma infância repleta de traumas. Os traumas vivenciados na infância acompanham as personagens ocasionado-lhes uma série de inadaptações. Uma infância sofredora que se traduz em uma personagem inadaptada e extremamente solitária.

o   História & ficção: articulação da memória individual e coletiva em As Naus, de António Lobo Antunes — Neiva Kampff Garcia.
A obra antuniana, As naus, editada em 1988, formaliza na ficção um contragolpe na narrativa histórica, atualizando a memória individual e coletiva sob o discurso paródico. A desconstrução de mitos históricos portugueses se faz pelo viés do retorno e da humanização desses seres, enquanto a sua nova existência se dá através da vocalização metafórica de elementos que vivenciaram o retorno do glorioso império de além-mar à capital do reino: Lixboa. Existem dois níveis de representação nesse livro: a construção histórica passada e veiculada como verdade e a construção subjacente, um verdadeiro circo dos enjeitados, credibilizada pela narrativa ficcional da atualidade. A História desfaz-se na sua construção artificial enquanto a Ficção reconstrói parodicamente as grandiosas figuras históricas. Por outro lado, os tempos presente e passado dialogam através das metáforas que interpretam livre e criticamente o pano de fundo histórico, frente ao qual se movem e atuam as personagens. Movência, desconstrução, memória, mito, historiografia oficial, metaficção e pós-modernismo são termos que traduzem a arquitetura desse romance de Lobo Antunes e que fundamentam nosso trabalho. Considerando que o autor, desde a sua trilogia inicial — Memória de elefante (1979), Os cus de Judas (1979) e Conhecimento do inferno (1980) —, insere várias de suas obras no viés autobiográfico, na autoficção e na escrita de testemunho, intentamos analisar As naus sob essas vertentes, de modo a dialogar com as propostas teóricas de George Gusdorf e Philippe Lejeune, bem como de Stuart Hall e Linda Hutcheon, acompanhando, exemplarmente, a perspectiva crítica dos estudiosos portugueses Maria Alzira Seixo, Ana Paula Arnaut e Carlos Reis, cuja produção bibliográfica engloba importantes estudos sobre o escritor.

o   Entre “fazer-se” autor e personagem: o ateliê da escrita de Lobo AntunesTatiana Prevedello.
Pensar o processo criativo que caracteriza o trabalho ficcional de António Lobo Antunes, desde o princípio de suas publicações romanescas, supõe entender alguns métodos que o autor utiliza para coordenar a fabulação dos enredos que emergem das páginas de seus livros, além da técnica que envolve a concepção das personagens que, muitas vezes, à medida que as histórias se desenvolvem, desejam mostrar que estão a serviço da escrita. As personagens, à proporção que se fixam no texto como sujeitos ficcionais, também se apresentam como autoras do seu próprio discurso. Nesse ponto, se torna visível a dicotomia entre as personagens que se reconhecem como autoras da história, e o autor, que se anuncia na narrativa projetado como personagem onisciente. Há a perspectiva da escrita in progress, tecida pelas refrações da memória sobre um trabalho que possui muita convicção referente ao seu fazer narrativo. Os textos se mostram finalizados não porque as histórias estão concluídas, mas pela conveniência da conformação do objeto livro, que precisa ser fechado, enquanto o enredo, assim como a vida, foge às regras e limitações. A escrita de António Lobo Antunes apresenta como uma de suas características peculiares a explicitação sobre o fazer narrativo e, consequentemente, traz para o cerne do texto a discussão sobre a poética ficcional. Nesse âmbito, ao nos voltarmos para os romances Eu hei-de amar uma pedra e Ontem não te vi em Babilónia, sobretudo,desejamos analisar alguns pontos que subjazem ao trabalho artístico do referido autor: o processo de criação literária, no qual se modela a elaboração de um livro; as “ferramentas” que compõem o seu ateliê artístico; e a dicotomia que se estabelece na relação entre autor e personagem, a considerar que ambos, nessa relação dialética, ao serem projetados no texto ocupam-se em discutir os limites e estratégias de ficcionalização da realidade.


Sessão 2 — quarta-feira, 08/10, 11h30 às 13h, sala 217 (Prédio de aulas).  
o   No meu fim está meu começo: narrativas pós-apocalípticas e a fundação da sociedade — Pedro Mandagará.
Compreender a relação com o Outro, seja este lugar ocupado por outra cultura, outra pessoa ou um outro não-humano, é uma das tarefas centrais da política contemporânea, uma tarefa na qual, segundo filósofos como Martha Nussbaum (1995), a literatura pode ter um papel fundamental. Em tempos de tantas catástrofes, humanas e ecológicas, investigar as bases de novos tipos de solidariedade pode ser uma estratégia de sobrevivência para os tempos vindouros. A destruição da sociedade e do Estado encenada em narrativas pós-apocalípticas leva os personagens sobreviventes ao Estado de Natureza. Essas narrativas revelam uma visão do que há por trás da sociedade, do que está no fundamento das relações sociais, do que resta se a coerção do Estado é retirada. São, portanto, uma fantasia política — e, ainda, uma fantasia ética, já que neste momento final (ou originário) ética e política estão juntas. Sem Estado, as relações entre indivíduos, campo de reflexão da ética, são o que há de política. A questão dos direitos, tanto dos direitos humanos quanto dos direitos do não-humano, é central nessa reflexão. Se existirem direitos humanos fundamentais, eles devem fundamentar uma vida ética mesmo no Estado de Natureza. Se existirem direitos do não-humano — dos animais, ou da “Natureza” — eles também devem se refletir nessa situação extrema. Porém, se, como defendem Slavoj Zizek (2005) e Alain Badiou (1995), não há direitos humanos fundamentais e universais, como se fundamenta um agir ético? Ou, se esses direitos existem, qual o limite do humano? Existe um papel de desumanização, de redução do Outro ao não-humano, envolvido no processo político? A partir de duas narrativas pós-apocalípticas — Oryx and Crake (2003), de Margaret Atwood, e The Road (2006), de Cormac McCarthy — este trabalho procura investigar as condições de refundação da sociedade em novos termos, isto é, como estes romances são também uma reflexão ético-política.

o   As relações fraternas e as ressignificações do humano no mundo distópico — Caroline Valada Becker.
O cenário é semelhante: não mais há energia elétrica, não mais há o sistema capitalista do ocidente, não mais há a organização social como a conhecemos — a lógica do trabalho, do consumo e da propriedade —, não mais há estabilidade ou segurança. Essa descrição esboça o universo distópico apresentado em duas narrativas pós-apocalípticas, especificamente um romance e uma graphic novelA estrada, de Cormac Mccarthy, e The walking dead, do roteirista Robert Kirkman. Nesta narrativa híbrida, lemos o apocalipse zumbi; naquele romance contemporâneo, encontramos o (inexplicado) caos da natureza. Em ambas as narrativas, a relação fraterna entre pai e filho, resquícios da composição familiar e amorosa, está tematizada e atravessada pela lógica desse novo mundo. Tais personagens, experienciando as novas regras sociais, buscam sobreviver e, dessa forma, ressignificam a condição humana — afinal, o ambiente está diferente, bem como as atividades exercidas pelo ser humano são outras. Para Hannah Arendt (2007), o humano é definido como uma condição incitada por três eixos essenciais, o labor, o trabalho e a ação. Partindo desse estudo ancorado na literatura comparada — cuja proposta coloca em diálogo dois gêneros artísticos —, podemos questionar: em um mundo pós-apocalíptico, tais definições ainda são pertinentes? Nas obras ficcionais referidas, o que define a condição humana, representada por meio da relação entre pai e filho? Segundo Rafaella Bacolini e Tom Moylan, no livro Dark horizons: science fiction and the dystopian imagination (2003), a imaginação distópica, apresentada nas criações estéticas, é um meio profético que indica preocupações éticas e políticas (e eu acrescento, ecológicas) do mundo contemporâneo ao autor. Sendo assim, além de analisar a poética da destruição delineada nas obras selecionadas, este artigo pretende verificar, a partir da figuração das personagens, a ressignificação do conceito de humano, em especial, este questionamento: qual legado — isto é, quais ensinamentos — os pais desejam deixar para seus filhos.

o   Traduções haraganas: o Outro castelhano nas edições brasileiras de María Luísa Bombal e Mario Arregui — Andrea Cristiane Kahmann.
Conforme Lya Wyler, no Brasil, 80% dos livros de prosa, poesia e referência, bem como manuais e catálogos, são traduzidos. Apesar disso, impera a invisibilidade do tradutor e dificuldade de se obter informações sobre os processos de tradução e as estratégias de mercado que impactam na escolha da obra a traduzir e na recepção da tradução. Portanto, ao se discutir os espaços teóricos, capitais, valores e práticas que constituem esferas de influência, domínio e resistência, os estudos de tradução vêm contribuir com reflexões imprescindíveis ao analisar os limites da negociação, dos mecanismos de controle e do falar por Outro. Nesse viés, deve-se recordar Spivak e o imperativo ético da impossibilidade de falar por e a necessária consciência da violência epistêmica implícita no próprio ato de traduzir. Venuti alerta que não existem estudos de tradução sem uma teoria da heterogeneidade da língua e da sua relação com valores culturais e políticos. E, assim, a análise das estratégias de assimilação e ruptura com as diferenças culturais deve considerar as tensões ideológicas por detrás da própria tradução da literatura e as dimensões éticas do fazer tradutório, conforme postulados de Berman. Neste trabalho, propõe-se a análise de duas obras traduzidas ao português brasileiro e que seguem caminhos diferentes quanto às estratégias de tradução. Primeiramente, será abordada a edição A última névoa, que engloba duas novelas de autoria da chilena María Luísa Bombal, em tradução de Laura Janina Hosiasson publicada pela editora Cosac Naify, em 2013. Após, Cavalos do amanhecer, livros de contos do uruguaio Mario Arregui em tradução de Sergio Faraco publicada pela editora L&PM, em 2003. Ambas obras seguem distintas estratégias de escolhas — lexicais, políticas e editorias — e deixam entrever a questão: num país de tanta tradução, por que a língua espanhola e o Outro castelhano são, ainda, tabus? 

o   A ética de falar da dor do outro: uma reflexão — Vivian Nickel.
Se é verdade que uma geração — ou mesmo, diversas gerações — emudecida pelo choque só se liberta dos fantasmas que a assombra, por conta da “história impossível” que carrega consigo, no momento em que consegue narrar a si mesmo, transformar sua experiência em linguagem, também é verdadeira a ideia de que esse processo envolve aprendizagem. Pois se existe ainda alguma chance de sobrevida para o narrador, a despeito do que tenha dito Benjamin, esse narrador tem de aprender a lidar com novas formas de contar. Na medida em que sua história extrapola os limites da narrativa clássica, linear; mais grave ainda, na medida em que sua história resiste a toda tentativa de integração à linguagem, exige-se dele também que busque novas formas de contar a si próprio. A tarefa de dar sentido a essa “história impossível”, de inseri-la no campo simbólico, demanda do narrador um esforço contínuo, uma luta contínua frente a linguagem. É preciso, como afirma Marcio Seligmann-Silva, promover um engajamento numa nova ética narrativa que reconheça, entre outros aspectos, a impossibilidade do ideal de domínio total do passado. A nova ética exigida por esse encontro diz menos respeito à renovação das estruturas de um discurso especificamente histórico do que à inclusão de outras formas de conhecimento, como a literatura, na árdua tarefa de reconstruir um passado tão inacessível. Esse trabalho propõe uma discussão acerca do modo como a estética das narrativas pode contribuir para o envolvimento do leitor no processo de elaboração da dor do outro e dos dilemas éticos que podem surgir para os escritores no momento em que estes assumem tal empreitada no campo da ficção.



Sessão 3 — quarta-feira, 08/10, 16h30 às 18h, sala 205 (Prédio de aulas).
o   O lugar da memória colonial entre romances, relatórios, mapas, mosaicos, jornais, anotações de um caderno, oralidade dos musseques e outras ficções verdadeirasGustavo Henrique Rückert.
Vinculado a um projeto de maior abrangência que pretende analisar a apropriação do gênero romanesco como estratégia do discurso pós-colonial em Portugal e Angola, o presente trabalho tem como objetivo estudar o espaço da memória colonial em ambas as literaturas. Para pensar o espaço, toma-se como ponto de partida as reflexões acerca da fronteira traçadas por Homi Bhabha em O local da cultura. Assim, os romances Partes de África, de Helder Macedo, português nascido na antiga colônia de Cabo Verde, e Nosso musseque, de Luandino Vieira, angolano nascido na antiga metrópole, configuram espaços híbridos para a escritura das memórias coloniais. Simultaneamente dentro e fora de um sistema colonial, essas memórias encontram espaço para a sua escrivivência a partir da zona intervalar entre as culturas do colonizador e do colonizado, sendo grafadas a partir do entre-lugar da ficção e da realidade, da literatura e da história, da autobiografia imaginada de um eu e da imaginação factual sobre o outro, do romance e dos relatórios, mapas, mosaicos, jornais, anotações, conversas informais e tantos outros gêneros que (de)compõem as referidas obras de Helder e de Luandino.

o   Uma leitura sobre as memórias de diásporas em Becos da Memória de Conceição Evaristo — Kátia Marlowa Bianchi Ferreira Pessoa e Maria Cândida M. Pereira.
Este trabalho tem como objetivo destacar o sentimento dos personagens de Becos da Memória ao saber que precisam deixar a favela que é o lar de todos, apesar da pobreza e da falta de estrutura, como água encanada e saneamento básico. No decorrer da narrativa, constata-se que nenhum dos personagens pretende abandoná-la, uma vez que não têm para onde ir e ainda estão presos em seus laços de amizade, permanecendo ali até a intimação da companhia. A obra retrata o sofrimento daqueles, marcado pela tristeza da perda do lugar em que vivem e da incerteza do amanhã. Tudo está estampado por meio das memórias de uma personagem, a menina Maria-Nova, cujas lembranças se juntam às memórias de outros moradores. Assim, é possível afirmar que o texto de Conceição Evaristo apresenta características memorialistas do começo ao fim, pois os fatos relatados pelos personagens não possuem uma sequência lógica. Eles são expostos ao leitor aos pedaços, recortados entre as memórias de outros personagens, como por exemplo: a narrativa inicia com Maria-Nova falando de Vó Rita e a Outra, passando para Tio Totó e suas lembranças familiares e sucessivamente a outros personagens. Por outro lado, observa-se que as memórias são assinaladas pela diáspora que se repete ao longo da narrativa, principalmente na família de Maria-Nova, a começar por Tio Totó. O texto de Conceição Evaristo apresenta, de acordo com a minha leitura, marcas do movimento da diáspora que ocorre três vezes:  a vinda involuntária da África dos ancestrais, a migração da família de Tio Totó do campo para a cidade e a saída da favela.

o   Quando a pátria é a terra dos outros: a desterritorialização nos contos “O elevador” e “Os marginais”, de João Melo — Rejane Seitenfuss Gehlen.
Analisar o processo de deslocamento que remete à desterritorialização e à necessidade de afirmação da identidade num espaço marcado pela homogeneização dos indivíduos é um dos intentos deste artigo. Assim sendo, o leitmotiv do estudo é a problematização da questão identitária no contexto de Angola no período da distopia e na atualidade. Através dos contos “O elevador”, da obra Filhos da Pátria e da narrativa “Os marginais” da obra homônima, ambas do escritor João Melo, pretendo caracterizar a pátria angolana representada como lugar de passagem, no qual as raízes culturais conflituam com os valores da nova nação. As personagens recorrem à memória para desencadear o processo de reterritorialização no próprio território angolano, problematizando o espaço enquanto locus de pertencimento a partir das questões da identidade e diferença lidas à luz dos ensinamentos de Homi Bhabha,  Paul Ricoeur, Stuart Hall, Gaston Bachelard, Guattari e Deleuze. O  estudo visa ao entendimento de que  território  é um espaço que se movimenta e fixa sobre um espaço geográfico, mas nem todo espaço geográfico é um território, porque para tal é preciso que haja o pertencimento, a vida que o ocupa o local físico precisa dar-lhe contornos que o singularizam. O movimento decorrente desta situação é que obriga as personagens analisadas a se constituírem sujeitos num espaço que não percebem mais como território e assim o reconhecimento do eu, tanto no plano individual quanto coletivo, constitui-se em atitude de resistência ao etnocentrismo e valores coloniais ainda presentes na Angola contemporânea.

o   Imigração, reterritorialização e memória em Abla Farhoud e Salim Miguel — Luciana Rassier.
No âmbito do VI Colóquio de Literatura Comparada da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (tema: Espaço/Espaços), eixo temático: Espaço — diáspora — memória, o presente trabalho propõe uma análise da articulação entre memória,espaço e figurações identitárias em dois romances que narram a saga familiar de imigrantes libaneses. De um lado, Le bonheur à la peau glissante (Montreal: Les Éditions de l’Hexagone, 1998 — Prix Philippe-Rossillon), da romancista e dramaturga líbano-canadense Abla Farhoud, conta, a partir da perspectiva da matriarca Dounia, a vida de uma família que se instala no Canadá, em Montreal. De outro lado, Nur na escuridão (Rio de Janeiro: Topbooks, 1999 — Prêmio Zaffari-Bourbon, Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte), do romancista e jornalista líbano-brasileiro Salim Miguel, retraça, em grande parte graças à lembrança do patriarca Yussef, a instalação de uma família no estado de Santa Catarina, no sul do Brasil. Em que medida essas narrativas se constituem em locus de memorias individuais e coletivas? Que papel esses romances atribuem às lembranças e ao esquecimento? Quais são as "feridas identitárias" (utilizo a expressão calcada pelo franco-libanês Amin Maalouf) da primeira e da segunda geração de imigrantes no processo de reterritorialização? Tais são as linhas que guiarão as reflexões que proponho desenvolver, amparada principalmente nos trabalhos teóricos de Bertrand Gervais (La ligne brisée: labyrinthe, oubli et violence. Montreal: Le Quartanier, 2008), Tzvetan Todorov (L'Homme dépaysé. Paris: Seuil, 1996; La littérature en péril. Paris: Flammarion, 2007), Julia Kristeva (Étrangers à nous-mêmes. Paris: Éditions Fayard, 1988) e Amin Maalouf (Les Identités meurtrières. Paris: Éditions Grasset,1998).

o   Remontando Zinos: imagens e sons, aromas e sabores — Lauro Iglesias Quadrado.
A escritora de ficção Jasmin Ramadan (1974) é caso exemplar da ordem mundial contemporânea no que diz respeito à maior internacionalização das indústrias culturais. A autora é filha de mãe alemã e de pai egípcio, e nasceu na cidade de Hamburgo, na Alemanha. Seus livros tratam de temas urbanos atuais, e seus personagens protagonistas são também frutos de misturas étnicas e culturais. Ramadan mistura conflitos provocados a nível pessoal por heranças culturais diversas junto à problemática individual vivida pelo homem comum do século XXI. Nesta comunicação, seu romance A Cozinha da Alma (2009) é analisado através de possíveis ligações que seu texto literário de ficção propõe com obras críticas e teóricas que abordam questões semelhantes. O leitor é apresentado ao protagonista Zinos Kazantzakis, um jovem que nasceu e vive na Alemanha no final do século XX, proveniente de família grega. Sua trajetória é marcada por constantes movimentos espaciais e pela esperança do imigrante, bem como pela inconstância em suas relações interpessoais. No entanto, o personagem tem uma frequente obsessão ao longo de toda a narrativa, a de abrir seu próprio restaurante, o qual seria dono e cozinheiro. O nome do estabelecimento é Soul Kitchen, indicando uma pretensão grandiosa de amplitude de sentidos — irônico para um local barato e sem estrutura. Mais: estabelece relação com a música, elemento crucial nos textos de Ramadan, e com o sentimento de conforto doméstico. Zinos, por fim, é constituído de relações sinestésicas que estabelece com diferentes meios com os quais se relaciona, e a partir delas constrói significados, juntando pedaços de suas memórias multiculturais.


Sessão 4 — quarta-feira, 08/10, 16h30 às 18h, sala 217 (Prédio de aulas).
o   A representação do espaço prisional nas literaturas brasileira e russa — Denise Regina de Sales.
A prisão obriga o condenado a deslocar-se do espaço familiar do seu cotidiano para um espaço arbitrário desconhecido. No caso dos escritores reprimidos por governos autoritários, o relato da experiência de prisioneiro transforma-se em testemunho contestador do regime. A narrativa de uma experiência pessoal definida com precisão tanto no tempo quanto no espaço adquire caráter nacional e amplia-se, inclusive, para o âmbito universal, transformando-se em documento da condição humana em quaisquer lugar e época. A partir de aproximações entre as obras Contos de Kolimá, de Varlám Chalámov, e Memórias do cárcere, de Graciliano Ramos, busca-se compreender as relações entre o texto literário, o momento histórico da escrita e as possibilidades de recepção ao longo do tempo. Ambos os autores passaram pela condenação e prisão políticas no século XX e transformaram a própria experiência em livros reconhecidos em seus respectivos países como obras importantes da literatura nacional. Em que medida a representação literária de campos de trabalhos forçados no extremo norte da Rússia encontra paralelos na representação de prisões no Rio de Janeiro? Igualmente presentes nas obras citadas, a necessidade de testemunhar, o choque entre o eu do escritor e a máquina do Estado e a crítica inerente à descrição de tratamentos desumanos obrigam-nos a extrapolar as fronteiras das Letras para explicar o fazer literário.

o   Territórios imaginários em Vodu Urbano de Edgardo Cozarinsky — Maria Augusta Vilalba Nunes.
Em seu artigo Literaturas pós-autônomas, Josefina Ludmer investiga a influência exercida pelo espaço físico e geográfico sobre a literatura e os processos de escrita. Ela verifica que algumas escrituras se introduzem na realidade cotidiana e constroem para essa realidade um presente, diluindo o limite entre sujeito do espaço e sujeito da escrita, isto é, a realidade do espaço definiria o escritor ao mesmo tempo em que seria definida por ele em seu texto. A literatura, pensada sob esta perspectiva, colocaria também em jogo o limite (se ele existe) entre a realidade e a ficção, já que mesmo sendo invenção, ela não deixa de estar fortemente cunhada na realidade (histórica). Entretanto, devemos salientar que essas práticas de escrita, apesar de construir um presente a partir do espaço e de seu cotidiano, não se definem por uma elaboração verossímil dos mesmos, isto é, elas não representam sua realidade, mas constroem realidades através do olhar do escritor. Estaremos, desse modo, traçando a partir do texto de Ludmer uma leitura do livro Vodu Urbano do escritor e cineasta argentino Edgardo Cozarinsky. Em Vodu Urbano o espaço é o desencadeador de memórias, histórias e reflexões que levam o escritor ao ato da escrita. A realidade do espaço se funde à experiência pessoal e a visão de mundo do escritor, tornando, desse modo, o texto um lugar híbrido e ambíguo que não se define nem pela ficção, nem pela realidade, mas por ambas. 

o   O cosmos urbano: visões da multiplicidade — Mairim Linck Piva.
A literatura de feição intimista perscruta os múltiplos “eus” constituintes do sujeito, particularmente na contemporaneidade em que elementos como globalização, deslocamentos ou fragmentação tornam-se indicadores das variadas facetas da representação humana nos textos literários. Na busca da representação do ser, foca-se também o estar, ou seja, a relação com o espaço, a relação de um determinado sujeito com seu mundo circundante, definidora de sua herança cultural, de suas expectativas, de sua própria identidade. Segundo Gaston Bachelard, é preciso dizer “como habitamos o nosso espaço vital de acordo com todas as dialéticas da vida, como nos enraizamos, dia a dia, num ‘canto do mundo’” (BACHELARD, 1988, p.24).  Gilbert Durand afirma que o espaço “parece ser de facto a forma a priori donde se desenham todos os trajetos imaginários.” (DURAND, 1989, p.283). Do ponto de vista sociológico, considerando o ser humano como um “ser social” por excelência, Maffesoli (1979) afirma que a socialidade nos seus diversos aspectos, ao lado de sua inscrição temporal, possui uma dimensão espacial cuja importância não pode ser negligenciada. Segundo ele, tudo o que possa ser dito de sua estrutura e de seu desenvolvimento, de sua pluralidade, encontra sua encarnação em um espaço determinado que estrutura ele próprio as situações que encerra. A fenomenologia de Bachelard, a antropologia do imaginário de Durand e a sociologia de Maffesoli convergem para destacar a relevante função do espaço na estruturação da vida e da imaginação do ser humano. Dessa forma, um exame dos espaços ficcionais em que se encontram as personagens de um escritor é um passo inicial para se situar o universo de valores e imagens de seus textos. Assim, esse estudo analisa a obra romanesca e contística do escritor sul-rio-grandense Caio Fernando Abreu a partir da perspectiva das representações simbólicas do espaço urbano.

o   O Romance d’A Pedra do Reino: espaço de criação e de reinvenção poética — Roseli Bodnar.
Este trabalho pretende analisar a questão do “espaço de criação e de reinvenção poética” na obra O Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta(1970), de Ariano Suassuna, tendo em vista dois objetivos principais: um estudo de gênero, já que a obra é de difícil classificação, pois apresenta elementos do romance e traços da rapsódiae da epopéia e, em seguida, abordar as fontes de inspiração do autor ligadas à cultura sertaneja nordestina e as tradições do mundo ibérico.

o   O trânsito no micro espaço e a constituição do privado: a casa e suas relações em duas ficções brasileiras contemporâneas — Natasha Centenaro.
Na pós-modernidade, período em que as fronteiras estão diluídas, é possível perceber uma nova constituição de espaço. Esses espaços cambiantes estão caracterizados na literatura brasileira contemporânea de forma a se pensar personagens em trânsito contínuo, do macro ao micro espaço.São personagens em deslocamentos físico e psicológico intensos, e suas casas são exemplos das relações de espacialidade interna (psique da personagem) e externa (em confronto com a rua).  Assim, pretende-se verificar como ocorre a elaboração dos diferentes espaços em dois romances brasileiros: Leite derramado (2009), de Chico Buarque, e Nada a dizer (2010), de Elvira Vigna. Analisa-se os movimentos no interior da casa, o micro espaço que se faz privado, e como essa constituição de espaço pode representar os deslocamentos físicos e também subjetivos das personagens. No primeiro deles, é possível perceber a decadência da família tradicional carioca conforme diminui a extensão de suas moradias, de uma imponente fazenda herdada de seus antepassados, ao chalé de Copacabana, ao casarão da Botafogo até o humilde apartamento de apenas um dormitório.E é no espaço restrito da intimidade que a narradora autodiegética de Elvira Vigna expõe seu conflito, o interior em relação ao exterior, e o exterior a partir do interior, numa casa em arrumação — a reorganização de uma família nada tradicional em São Paulo. Para este artigo, busca-se utilizar a conceituação de espaço da geografia e como categoria literária, bem como, a Poética do espaço, de Gaston Bachelard.

Sessão 5 — quinta-feira, 09/10, 14hàs 15h30, sala 205 (Prédio de aulas).
o   O espaço e o corpo na constituição do sentido — Vera Lucia Lenz Vianna.
Pensar o espaço como estatuto central da literatura de cunho autobiográfico e testemunhal, bem como de outros gêneros literários, permite pensar questões que vão desde a possibilidade de descrição da experiência do corpo, da construção do sentido, da retenção da memória e do processo histórico entre outros tópicos. Os textos de Maya Angelou, I Know Why the Caged Bird Sings ( 1970), e de Toni Morrison, The Bluest Eye (1970), apresentam uma reflexão profunda e lúcida sobre o sentimento de desamparo, dor e exclusão que o negro sofreu no espaço geopolítico dos Estados Unidos da América. É através da tentativa de compreensão deste espaço e das distorções inerentes às relações de ordem racial, cultural e ideológica, que Angelou se debruça em sua própria história a fim de promover a capacidade do auto-reconhecimento e da auto-aceitação. Por sua vez, através de uma trama narrativa onde diferentes vozes e corpos emergem “no interior do jogo de modalidades específicas de poder” e tornam-se  mais o “produto da marcação da diferença e da exclusão, do que o signo de uma identidade” (HALL, 2004, p.109), Toni Morrison constrói a história de Pecola, Claudia e Frieda: meninas  que se debatem em um universo sociocultural erigido para rasurar suas existências. A análise busca desnudar a forma como estes textos iluminam o fardo que o preconceito inflige as suas vítimas e que acaba tornando o passado nebuloso, o presente inacessível e o futuro ameaçador. Teóricos como Frantz Fanon, Gina Wisker, Stuart Hall e Henry Louis Gates Junior servem de suporte teórico para o trabalho.

o   A importância do corpo em O Reino de Gonçalo M. Tavares — Sandra Beatriz Salenave de Brito.
Gonçalo M. Tavares é um escritor português contemporâneo que, em sua tetralogia O Reino, aborda diversas questões de caráter reflexivo sobre a constituição do ser humano, estabelecidas principalmente na oposição ou complementariedade entre a consciência e a inconsciência, a razão e a emoção, o eu e o outro, o desejo e a moral, a sanidade e a loucura, a liberdade e o aprisionamento, a natureza e a tecnologia, a dominação e a opressão. As personagens vivem situações variadas que evidenciam a importância do corpo enquanto modo de apropriação do mundo e das ações, seja na percepção através dos sentidos,ou como um instrumento de trabalho; ou ainda como um espaço a ser desvendado; e também um território a ser ocupado por si mesmo. Este trabalho retomará alguns aspectos já abordados na dissertação de Igor Gonçalo Graves Abraços Furão (Universidade de Lisboa, 2013), na dissertação de Maria Margarida Araújo e Marques (Universidade de Coimbra, 2010) e na tese de Júlia Vasconcelos Studart (UFSC, 2012), mas fundamentará a análise principalmente em alguns conceitos foucaultianos sobre o corpo, a sexualidade, a loucura e a punição; freudianos sobre a consciência, os instintos e a cultura, nietzscheanos sobre a moral, a maldade e a razão. Todas estas questões são permeadas pelo espaço da guerra que se desenvolve durante grande parte da narrativa, e deixa suas marcas mesmo depois de seu término. As personagens de O Reino representam a elaboração de uma identidade que, em alguns aspectos, é individual, refletindo a trajetória da personagem, mas, na maioria das vezes, é coletivo, pois refere-se a questões que são inerentes ao ser humano.

o   O corpo como espaço de dor e sofrimento: representações patológicas em Germinie Lacerteux (1865), dos Irmãos Goncourt — Vanessa Costa e Silva Schmitt.
Manifestação do corpo em desordem, a dor revela a fragilidade física e psíquica do ser humano. Para além do sentido de mecanismo orgânico de defesa e de proteção, como é compreendida hoje no âmbito da fisiologia, a sensação dolorosa pode ser seguidamente confundida com o sofrimento. Sejamos objetivos: aqueles que sentem dor sofrem, e o sofrimento moral corresponde muito frequentemente ao mal físico. Alain Corbin define a dor como um desequilíbrio do sistema sensitivo, sem dúvida, mas também como uma "construction sociale, psychoculturelle, formalisée dès le plus jeune âge", de modo que o sentido que lhe é conferido preexiste à sensação experimentada[1]. Não se deve ignorar a natureza individual, tampouco a social, da dor: o contexto no qual o indivíduo se insere contribui para impregná-lo de diferentes significados em relação à experiência dolorosa. Assim, é possível observar modelos e parâmetros que se repetem à luz de ideias pré-concebidas, repetidas à exaustão. Temática que ultrapassa a esfera da medicina, sempre flertando com a teologia, a dor (e com ela todos os lexemas que dizem respeito ao universo do sofrimento) aparece desnudada e sem subterfúgios em Germinie Lacerteux (1865), um dos romances mais célebres  de Edmond e Jules de Goncourt. Trata-se, nesta comunicação, de analisar o corpo como espaço de dor e sofrimento. Inicialmente, propõe-se a avaliar as instâncias de sofrimento físico e psíquico da protagonista, Germinie. Logo após, serão examinadas as representações dos (possíveis) distúrbios no corpo e pelo corpo, ou se, talvez, estes pertençam à fronteira do indizível. Por fim, tentar-se-á analisar a legitimidade de conceber Germinie (uma pobre doméstica infeliz), bem como as manifestações do seu corpo gasto e corrompido, como um caso patológico.

o   A ação literária na construção do corpo identitário teatral — Bia Isabel Noy.
Nas Artes Cênicas o corpo é o principal elemento do ator. Ele é a matéria bruta através da qual a identidade do personagem será esculpida. Para a construção corporal do “eu cênico”, além de diversos tipos de artifícios, o elemento fundamental que modela tanto o corpo como a mente do personagem são as ações por ele realizadas. Na arte teatral, a ação é vista como a atividade primordial do ator na cena, possuindo uma característica prática que passa indiscutivelmente pelo corpo. Desta maneira, a ação é por excelência o trabalho do ator, sendo parte essencial do processo de composição do personagem. As ações executadas na cena, por muitas vezes possuem sua origem nas páginas da literatura, ou seja, tendo suas bases no texto literário, ela se torna matéria psicofísica no teatro: a ação literária é um dos importantes elementos responsáveis pela criação identitária do corpo cênico. Na literatura (texto) como no teatro (ator), a ação é aquela que permite o elã, que impulsiona além, que compreende todo o organismo textual e corporal, possuindo então uma estreita relação com a construção dos personagens. Desta forma, sabendo que as ações teatrais implicam o envolvimento de todo o corpo e sendo que elas partem, em sua maioria das páginas literárias, nesta reflexão, pretendemos aprofundar mais esta relação, construindo um caminho no qual o texto é a construção do corpo: o texto é verbo, o verbo é ação e ação é corpo em composição. Posto isto, em um espaço limiar, no qual as Artes Cênicas dialogam com a Literatura Comparada, discutiremos como as ações literárias se tornam a mola propulsora para uma ação teatral, na qual o corpo se apresenta como um processo de construção da identidade de um personagem, resultante assim da sólida relação entre estes dois saberes.

o   Percepção do espaço: figurações da casa em Lobo Antunes Raquel Trentin.
Em Fenomenologia da Percepção, Merleau-Ponty nos ensina que a unidade do espaço só é depreendida a partir da mediação da experiência corporal, pois, no espaço em si, sem a presença de um sujeito psicofísico, não há nenhuma direção, nenhum dentro, nenhum fora. Se cada sensação é uma superfície de contato com o ser, em lugar de um espaço único, temos, com cada uma, um modo particular de ser no espaço e, de algum modo, de fazer espaço. Também a narratologia contemporânea, em diálogo com as ciências cognitivas,tem repensado a relação da personagem e do narrador com o espaço, descrevendo os elementos que intermediam e qualificam essa relação. Com base nas contribuições dessas duas linhas teóricas, pretendemos ler os possíveis sentidos da figuração da casa em Lobo Antunes, especificamente nos romances Os cus de Judas (1979), Fado Alexandrino (1983) e O esplendor de Portugal (1997). Nesses romances, os lugares povoam-se de devaneios, paixões e fantasmas em sincronia com as complexas experiências psicológicas das personagens. “O ser abrigado sensibiliza os limites do seu abrigo”, dizia Bachelard em A poética do Espaço; em Lobo Antunes, experiências de violência, dispersão e perda afetiva problematizam a noção de casa como um dos lugares de estabilidade do ser.

Sessão 6 — quinta-feira, 09/10, 14h às 15h30, sala 217 (Prédio de aulas).
o   Metrópole e natureza: a resistência à desumanização dos grandes centros — José Humberto Torres Filho.
Este trabalho tem por objetivo investigar a relação estabelecida entre a metrópole e a natureza em duas narrativas do século XX, quais sejam: Palomar (1983), de Italo Calvino, e Os dragões não conhecem o paraíso (1988), de Caio Fernando Abreu. A primeira obra é construída a partir do ponto de vista de Palomar, um homem míope que possui o nome de um dos observatórios astronômicos mais famosos do planeta. A dualidade que o protagonista da história de Calvino enseja culmina numa atenção pormenorizada e sensível em meio ao ritmo de uma cidade grande: Roma. Já a obra de Caio Fernando Abreu retrata São Paulo no fim dos anos 80, cidade marcada pela solidão de seus habitantes e envolvida em um crescente processo de desumanização.Assumindo como aporte teórico a leitura que Walter Benjamin realiza sobre a modernidade, procuramos analisar a relação dialética entre metrópole e natureza nas duas obras. No caso do livro de Italo Calvino, à medida que Palomar detém seu olhar sobre a natureza presente no meio urbano, é possível captar em negativo as sombras da metrópole que se agiganta ameaçando a fragilidade do homem. Trata-se de um mecanismo de revelar a brutalidade do caos urbano a partir da sensibilidade representada pela natureza. Processo semelhante se dá na produção de Caio. Seus personagens se isolam do convívio com o outro, aprisionando-se em seus apartamentos, deixando o eco da metrópole reverberar na solidão humana. A natureza dessa vez surge a partir da memória de uma infância no campo. Longe de representar a busca por um paraíso perdido, a representação da natureza destaca quão distante a experiência do homem morador das grandes cidades está do lado sensível. 

o   Sobre a temporalidade da escrita Bio em Água Viva e no Livro das HorasLuciana Abreu Jardim.
Água viva, texto experimental de Clarice Lispector publicado em 1973, constitui um marco literário para as investigações dos estudos acerca do feminino e de sua relação com textos de memórias, seguindo a categoria dos autobiográficos. O conceito de uma escrita bio, desenvolvido pela personagem-narradora de Água viva, estabelece estreito vínculo com a questão da temporalidade. Cumpre destacar que a busca da personagem-narradora recai sobre o inalcançável instante-já, de modo a delinear os traços de um corpo marcado pela constante ameaça do desaparecimento. Ressonâncias da agônica temporalidade clariciana retornam no recente livro de memórias de Nélida Piñon. No Livro das horas (2012), a escritora reconhece a importância da escrita clariciana, o que a leva a mencioná-la mais de uma vez em seu relato de cunho autobiográfico. Observe-se que a categoria do tempo, outrora investigada por Lispector sob a auto-inspeção de sua força protagonal, ressurge para dar título e unidade à escrita de Piñon, de modo a enfatizar o drama subjacente à fugacidade do tempo. Refletir e escrever acerca do tempo deixando à mostra flagrantes de possibilidades de sentidos tecidos por narradoras confessionais, para além do pensamento logocêntrico, demanda o reconhecimento de experiências que circulam no cruzamento da biologia, da cultura e sobretudo da condição feminina. Assim, buscaremos fundamentar as investigações de Lispector e Piñon, referentes às escritas marcadas pela temporalidade, por meio dos estudos de Julia Kristeva sobre o mesmo tema. Para tanto, retomaremos algumas reflexões de Kristeva que dialogam com o pensamento clariciano, que se encontram dispersas em artigos de obras tais como La haine et le pardon (2005), Visions capitales (1998), Pulsions du temps (2013) e Seule une femme (2007). A intenção não será a de demarcar a identidade de um espaço de escrita feminina, mas antes a de acentuar o espaço de sua singularidade.

o   A memória cultural sob conflito: um texto a respeito do maior centro de tortura da ditadura argentina — Luís Roberto de Souza Júnior.
A Escola de Engenharia Mecânica da Marinha (Esma), em Buenos Aires, serviu de maior campo de detenção ilegal e de tortura durante a última ditadura militar (1976-1983) argentina. Hoje em dia, abriga o Espacio para la Memoria y la Promoción y defensa de los Derechos Humanos, o qual se pode visitar. Estamos diante de um autêntico local traumático, conforme a definição de Aleida Assmann em Espaços da recordação — Formas e transformações da memória cultural: “O local traumático preserva a virulência de um acontecimento que permanece, como um passado que não se esvai, que não logra guardar distância”. Segundo Assmann,  a expectativa é que esses locais promovam um aumento da intensidade da recordação por meio da contemplação sensorial. A estudiosa salienta que por essa abordagem o palco dos acontecimentos históricos deve tornar acessível ao visitante o que as mídias escritas ou visuais não conseguem transmitir: “a aura que não é reproduzível em medium algum”.Trata-se do caso da Esma. É um passeio longo, de três horas, e, sobretudo, pesado. Ouve-se, por exemplo, que dos cinco mil presos ali torturados, cerca de 200 sobreviveram. Tzvetan Todorov, após visitar a Esma e um monumento aos desaparecidos durante a ditadura, escreveu um texto no qual dizia ter sentido falta nesses lugares de sinais que remetessem ao contexto da época ditatorial. Tomando como base os pressupostos de Assmann e o texto de Todorov, além da pergunta “O binarismo encerrado na ideia de conflito pode ser transfigurado pela ação da literatura?”, este trabalho se propõe a pensar uma forma literária de descrever e ressignificar o que aconteceu na Esma e na ditadura argentina.

o   Rio-baldo x Rio-bardo: as veredas do narrador — Valéria de Castro Fabrício.
Este trabalho realiza um estudo a cerca da categoria do narrador na obra "Grande sertão: veredas", de Guimarães Rosa. Para tanto, toma como referência teórica o texto de Hannah Arendt intitulado "Ação" e o de Walter Benjamin, "O narrador". Nossa proposta de trabalho parte do entrecruzamento das abordagens dos dois teóricos analisando-as sob a perspectiva do narrador, mais especificamente, a função da narrativa de Riobaldo. Entendemos que sua elocução pode ser analisada sob dois aspectos: o da afirmação de uma identidade coletiva e o da especulação sobre a identidade individual. Primeiro, tomando as prerrogativas de Benjamin, observamos que o discurso do ex-jagunço expõe uma leitura de mundo que resgata um cabedal de conhecimento adquirido ao longo do tempo e de sua experiência e por isso reflete valores coletivos. Nessa perspectiva, ele porta-se como o narrador que domina tais verdades, tem portanto, autoridade para narrá-las, consequentemente, responsabilidade de perpetuá-las. Em o fazendo, aproxima-se do narrador primitivo proposto por Benjamim, sintetizado nas imagens do artesão e do marinheiro. Eles apresentam-nos quem somos. Simultaneamente, o relato de ex-chefe de bando possui espaços discursivos repletos de questionamentos. Esses se referem menos ao entendimento das coisas factuais do mundo e mais à ordem do individual, do vivenciar. Eles buscam responder à pergunta sugerida por Hanna Arendt: quem sou? Assim, acreditamos ser possível abordar a função da ação narrativa de Riobaldo, nessa dupla perspectiva: um relato em que o narrador apropria-se de autoridade para asseverar, e, ao mesmo tempo, assume sua relatividade para indagar. Rio-bardo afirma através do resgate de sua ação no mundo; Rio-baldo pergunta na busca da apreensão do seu experienciar o mundo.

o   Malévola, a vilã e seu conto de fadas — Maria Dorothea Barone Franco.
Esta comunicação tem por objetivo o estudo de um exemplo da complexidade das personagens ficcionais no desempenho de seus papeis híbridos nas reinterpretações dos contos de fadas para o cinema do século XXI. Há uma pulsante alternância das esferas de ação — antagonista e herói — na transmutação das narrativas maravilhosas, narradas na voz e na imagem fílmicas. As adaptações cinematográficas dos contos maravilhosos elaboram imagens de personagens bem mais humanas e, portanto, mais conflitadas. As ações das personagens, na maioria das adaptações para as narrativas maravilhosas, estão mais próximas das humanas. A representação do maniqueísmo perde sua força e heróis e vilões partilham “direitos iguais”. A perfeição de superfície dos seres ficcionais das histórias de fadas desaparece na metamorfose estrutural, cultural e social para o cinema, que apresenta heróis na condição de indivíduos em crise com seus valores, sem abrirem mão de conceitos morais, conforme se manifesta no espaço gestual, vocal e visual da tela. A investigação Malévola, a vilã e seu conto de fadas tem, pois, o objetivo de abordar as tensões comportamentais e morais das personagens na troca de suportes/espaços de enredos: do conto de fadas A Bela Adormecida no Bosque (1989) para a adaptação cinematográfica Malévola (2014). O público adulto, espectador da nova adaptação para a narrativa maravilhosa no cinema, reelabora o conceito de humanidade, assumindo os indicadores morais necessários para o convívio em sociedade. A sustentação teórica da investigação compreende os escritos de Linda Hutcheon (2011) sobre o processo de adaptação textual para a mídia cinematográfica, a imagem no cinema por Gilles Deleuze (2013) e a forma como são constituídas as narrativas maravilhosas, conforme Vladimir Propp (1972).


Sessão 7 — quinta-feira, 09/10, 16h30 às 18h, sala 205 (Prédio de aulas).
o   Corpo, espaço e deslocamento em A Obscena Senhora D, de Hilda Hilst — Cinara Ferreira Pavani.
A ocupação do espaço e os deslocamentos empreendidos pelo sujeito em sua trajetória possuem uma dimensão simbólica, que pode apontar significações variadas, entre as quais as relativas à identidade e ao sentido da existência. Nesse processo, estão presentes interações entre o individual e o social, o físico e o metafísico, o existente e o ausente, a lucidez e a loucura, como muito bem se observa em A obscena senhora D, obra em prosa publicada por Hilda Hilst em 1982. A autora narra a história de uma mulher de 60 anos que, após a morte do amante, passa a habitar o vão da escada de sua casa, evidenciando o ápice de um questionamento filosófico sobre o sentido da vida e o vazio da morte. A narrativa caracteriza-se pela multiplicidade de vozes, tempos e espaços através dos quais a personagem faz referências tanto a seus momentos de plenitude vivenciados intensamente no corpo em sua relação amorosa, quanto a seu drama existencial resultante de uma busca incessante e improdutiva de respostas. A linguagem utilizada também revela diversidade, ao alternar, por exemplo, formas líricas com um discurso pornográfico ou formas cultas com uma expressão popular. Diante da constatação da importância do espaço e de seus desdobramentos na configuração da obra, este trabalho objetiva examinar a travessia simbólica realizada pela personagem Hillé, tendo como pressupostos teóricos as discussões contemporâneas sobre o espaço, o não-lugar, o deslocamento e o corpo, realizadas por autores como Michel Foucault, Jacques Derrida, Marc Augé, entre outros.

o   Elena, sobre a (auto)representação no cinema — Gabriela Semensato Ferreira.
Antes mesmo que se pudesse assistir a Elena (2012), o pôster do filme já gerava expectativas. Nele, figura uma mulher submersa na água, olhos fechados, vestido delicado e uma expressão quase serena. Ante esse corpo feminino à deriva, outras imagens surgiam como ecos: a personagem Ofélia, em Hamlet (1603), de Shakespeare, cuja precipitação ao riacho é anunciada pela rainha; a pintura de Ofélia (1851–52), de John Everett Millais, em que se pode vê-la a flutuar. Em Elena, a diretora Petra Costa torna-se personagem e, também narradora, vai tecendo um diálogo solitário com a irmã. Não narra apenas a história de sua vida e morte, mas chama-a pelo nome, por um “você” que se repete. Também não se posiciona somente como entrevistadora, mas, com a câmera na mão, vai guiando os olhos pelas ruas de Nova Iorque, à procura dos espaços por onde passou, onde se transformou Elena. Sente confundir-se com a irmã: aparência, voz, histórias similares. Multiplica-se, porém, em meio a outras mulheres à deriva (através de memórias da família, de experiências artísticas) em busca do que consiste a diferença entre si e a outra, em busca da própria identidade. Nessa obra, coexistem as problemáticas da representação (biográfica) e da autorrepresentação. Ao dirigir-se à Elena, na locução em off, Petra fala de si, da mãe, de Ofélia, da infância, da busca pelo sonho de fazer parte do cinema enquanto mulher, jovem, brasileira. Assim, nesse documentário não convencional, apresenta visual e verbalmente a difícil tarefa de representar, que será observada, neste trabalho, enquanto questão fundamental no campo das artes e da teoria. Partindo de noções narratológicas aplicadas ao cinema, consideramos, ainda, estudos acerca da construção da identidade e do corpo no espaço poético. Concentramo-nos, por fim, na conseqüente discussão acerca da representação — e sua crise — na contemporaneidade.

o   A (des)constituição do feminino em O Remorso de Baltazar Serapião, de Valter Hugo Mãe — Ana Lúcia Montano Boessio.
O objetivo deste trabalho é analisar o papel do contexto cultural na (des)constituição do feminino, através da relação entre “baltazar”, personagem principal na obra de valter hugo mãe, o remorso de baltazar serapião, e sua esposa “ermesinda”. Entendendo cultura como uma construção antropológica e, segundo Roy Wagner, uma “invenção”, percebe-se o quanto um espaço marcado pelo isolamento e, consequentemente, por práticas culturais rígidas e inquestionáveis, pode influenciar no comportamento de um grupo, definindo suas dinâmicas na arena social. Na narrativa de mãe, o processo inter-relacional de constituição do sujeito, como proposto por Mikhail Bakhtin, o qual requer a presença do “outro” para que o sujeito constitua a si mesmo, é completamente distorcido: o “outro” humano é transformado em objeto irreconhecível, ao mesmo tempo em que o animal recebe status de ser humano. Neste caso, a maior consequência é a desconstituição do feminino, que não apenas é privado de direitos sociais, mas também de voz, mobilidade, e até integridade física. A desconstituição do feminino como uma invenção cultural torna-se, na obra literária, um reflexo do que Roy Wagner chama de aspecto coletivo de simbolização, dialeticamente identificado com o modo moral, ou ético, da cultura. Como acontece ao antropologista, no mundo ficcional de mãe, Cultura é apresentada como um tipo de ilusão, “um contrapeso (e uma espécie de falso objetivo)” (WAGNER, 2009, p. 19) para ajudar o narrador/leitor a ordenar suas experiências e compreensão sobre o feminino como uma construção cultural e, portanto, limitada pelo tempo e pelo espaço.        

o   Film (1963–64): quando o duplo cinematográfico beckettiano encontra o duplo narrativo benjaminiano — Mauro de Araújo Menine Jr.
A presente comunicação realiza a leitura crítica de Film (1963–64), único roteiro e realização cinematográfica de Samuel Beckett, a partir da perspectiva teórica dos narradores benjaminianos que compõem a criação literária, logo, todas as outras formas de arte que englobam a narrativa. O duplo beckettiano dialoga com o duplo benjaminiano quando ambos se encontram no espaço, no corpo e na diferença através da dupla composição narrativa: em Benjamin, tanto no exterior — o marinheiro mercante — quanto no interior — o lavrador sedentário, ou em Beckett, nos seus personagens — E e O —, duplos de um mesmo narrador. Como ferramentas em e de construção do eu, portanto da possibilidade do outro -ou da diferença do próprio eu -, a teoria benjaminiana ilumina a duplicação dos personagens beckettianos, revelando uma clownerie filosófica acerca da possibilidade da linguagem como [in]formação da identidade, do espaço e do tempo. A voz em primeira pessoa dos narradores beckettianos e benjaminianos evoca a oralidade narrativa, a bidimensionalidade da imagem e do som e a tridimensionalidade da cena, hibridizando as noções de presente-passado e presente-presente da narração: pode ser imaginário cinematográfico e/ou imaginação literária, portanto, molda-se conforme a necessidade da linguagem do meio operado. Para tanto, a análise audiovisual de Film se inspira no referencial teórico-metodológico proposto por Jacques Aumont e Michel Marie, com alusões à leitura de Gilles Deleuze sobre o mesmo. Enfim, o monólogo dos autores-narradores beckettianos/benjaminianos constrói uma fronteira adaptável às diferentes linguagens em que são narradas. Conclui-se que o duplicar-se beckettiano em Film é a prática narrativa do entre gêneros, ou melhor, o pensamento filosófico a partir do instrumento cinematográfico, introduzido através do discurso indireto livre de autores-narradores, realizando o monólogo interior cinematográfico, porquanto a união do marinheiro e do lavrador.

o   Marcas subalternas: corpo e subjetividade em Carolina Maria de Jesus — Carla Lavorati.
Carolina Maria de Jesus, brasileira, negra, pobre, mulher. Nascida em 1914, ficou conhecida no Brasil e no mundo após a publicação de seu livro diário Quarto de Despejo, em 1960. Adjetivada por estudiosos como Joel Silveira (2009) como a escritora improvável, pois provém das margens da sociedade, da economia, da educação e da cultura do país; Carolina Maria de Jesus, pode ser observada como símbolo dissonante, posto que ela foi em vida e é em sua obra, o reverso da moeda, o lado em desvantagem, o outro do discurso do poder, o lado marginal da cultura e do consumo. No livro Quarto de Despejo, e mesmo em outras obras publicadas como o Diário de Bitita (1982), Pedaços da Fome (1963), Casa de Alvenaria (1961) e Provérbios (1963); encontramos as marcas do lugar marginal ocupado por Carolina Maria de Jesus dentro do cenário sociocultural do país, o que torna a sua escritura um espaço de tensionamento da própria linguagem e das relações entre poder e o saber que a envolvem. Essa marginalização foi sentida em todo o percurso da sua vida, pois no jogo das relações sociais, Carolina, carregou estampada na pela negra, no corpo feminino e nas roupas desgastadas as marcas da alteridade que compunham sua própria identidade. Portanto, o objetivo é analisar como o corpo é representado em sua obra Quarto de Despejo, para observar como essa temática é problematizada e quais as relações estabelecidas entre identidade/alteridade. Como suporte teórico recorrermos às reflexões de: Landowski (2002); Zigmunt Bauman (2005) e Xavier (2007).


Sessão 8 — quinta-feira, 09/10, 16h30 às 18h, sala 217 (Prédio de aulas).
o   Entre senzala e buraku: o naturalismo e o surgimento do discurso de direitos humanos no Brasil e no Japão na virada do século XX — Roberto Pinheiro Machado.
Este trabalho visa oferecer uma leitura comparativa do naturalismo no Brasil e no Japão e de sua relação com o surgimento do discurso de direitos humanos nos dois países na virada do século XX. A estética naturalista engendrada por Émile Zola (1840–1902)foi acolhida no Brasil e no Japão em tempos de profundas transformações políticas e sociais. Enquanto o Brasil fazia a transição do Império à República, o Japão passava da prolongada ditadura militar do período Edo (1603–1868) à nova organização produzida pela Restauração Meiji. Em ambas a nações uma nova classe social de homens livres surgia, e literatura naturalista foi, em ambos os casos, a primeira corrente literária a retratar a condição do novo indivíduo libertado da servidão. Enquanto no Brasil a publicação da obra O mulato (1881) de Aluísio Azevedo (1857–1913) originou a dimensão literária do movimento abolicionista, no Japão a obra Hakai (1906) de Shimazaki Tōson (1872–1943) abriu um debate nacional sobre a questão do preconceito sofrido pelo grupo dos shinheimin, os novos cidadãos liberados da condição servil pelo governo Meiji em 1871. Tomando por base os processos sócio-culturais que levaram à edição da Lei Áurea (1888) no Brasil e do Ato de Liberação (Kaihōrei, 1871) no Japão, este trabalho analisa a relação entre as inovações linguísticas e literárias promovidas pela estética naturalista e os desenvolvimentos ocorridos no campo do direito e da legislação. O naturalismo aparece, assim, como pivô de uma história literária que se confunde com a história do direito e da cidadania na periferia do capitalismo na virada do século XX.

o   Viagem, música e memória em A Volta do Gato Preto, de Erico Verissimo — Gérson Werlang.
Nosso estudo propõe a análise da Literatura de Viagens do escritor brasileiro Erico Verissimo a partir da presença da música. Para tanto, serve-se do livro A Volta do Gato Preto em Campo de Neve, de 1946, relato de uma viagem do escritor aos Estados Unidos. As relações entre música e memória, assim como a observação acurada dos estilos musicais característicos dos locais por onde passa, reforçam a presença da música como uma das marcas definidoras de sua Literatura de Viagens. A Literatura de Viagens, conquanto exista desde a antiguidade, apenas agora começa a encontrar seu nicho na crítica literária. A produção de relatos de viagens tem perpassado toda a história ocidental e foi responsável pela mudança da visão de mundo em diferentes épocas. Segundo Fernando Cristóvão “a Literatura de Viagens (...) é um subgênero compósito, em que a Literatura, a História e a Antropologia, em especial, se dão as mãos para narrar acontecimentos diversos relativos a viagens”. Dentre os escritores brasileiros, o gaúcho Erico Verissimo destaca-se também pela frequência com que abordou as narrativas de viagens. “Desde criança fui possuído pelo demônio das viagens”, diz o escritor em suas memórias. Esse “demônio” foi responsável pela produção de diversos livros dedicados às viagens que o escritor fez pelo mundo. Neles, o ficcionista dá lugar ao viajante interessado em praticamente qualquer aspecto da existência. A narrativa de A Volta do Gato Preto apresenta uma sucessão de quadros descritivos dos lugares por onde o escritor passa, e essas imagens são deflagradoras de múltiplos elementos da memória de seu autor. Na dança das descrições, surge a música como presença fundamental, variada e agregadora.

o   Torna-viagem oitocentista: “brasileiro” ou expatriado na própria terra? Estudo sobre o conflito identitário na representação literária do emigrante português oitocentista que veio para o Brasil — Gisélle Razera.
No século XIX, uma combinação de fatores pesou na decisão de muitos portugueses de migrarem para o Brasil: escassez de recursos, baixa perspectiva de ascensão social por meio do trabalho agrícola, a injusta distribuição de terras, a não industrialização do país, etc. Esse contexto, unido ao incremento da tecnologia marítima, marca daquele tempo, motivou a travessia atlântica de lusos com destino ao “Eldorado”. Esses migrantes, divididos entre o tolerar a vida parca a que estavam condenados em Portugal e o colher o tesouro da “árvore das patacas”, conforme o imaginário relacionado ao Brasil, escolheram a aventura em terras sul-americanas — em sua maioria, alimentando o desejo de retornar à pátria desde o instante da partida. Muitos conseguiram regressar, ainda que nem todos ricos. No entanto, uma vez em solo natal, eram alcunhados de “brasileiros”. Segundo Eça de Queirós, essas pessoas assumiam condição apátrida, pois,não tendo se tornado brasileiros, portugueses não voltariam a ser. De certa forma, viver em terras brasileiras impôs a esses migrantes uma modalidade de expatriação, mesmo quando estavam novamente no chão em que nasceram. Esse fenômeno foi amplamente representado na dramaturgia e na literatura lusitana, sobretudo a partir da segunda metade do Oitocentos — por artistas que ilustravam esse movimento migratório e que, muitas vezes, transferiam ao objeto artístico o dilema social em que estavam imersos. Conforme Jorge Alves, a vasta representação desse emigrante por meio da arte criou um clichê, condensando num único termo— “brasileiro” — uma pluralidade de imagens e exotismo que o emigrante retornado arrastava consigo. Partindo dessa premissa, e refletindo sobre o enredo das obras Ódio de raça, drama de Gomes de Amorim, e Ouro e crime, romance de Eduardo Tavares, pretende-se demonstrar como o Brasil — enquanto espaço da contravenção — foi ilustrado de acordo com uma imagem do país que era difundida em paralelo à ideia de fonte inesgotável de riqueza.

o   Diomedes Grammaticus e a publicação de teoria literária no Renascimento antes da redescoberta da Poética de Aristóteles — Odi Alexander Rocha da Silva.
Uma das mais importantes questões legadas pela teoria da mímese clássica é a tripartição dos gêneros literários: lírico, épico e dramático. A crítica de modo geral tem como consenso que a grande expressão de teoria literária no Renascimento foi originada com a redescoberta da Poética de Aristóteles a quem se deve uma importante contribuição sobre o tema dos gêneros literários. Entretanto, décadas antes desta redescoberta, há provas de que, pouco após a invenção da imprensa, verifica-se a publicação de uma obra que tece considerações contemplando a tripartição dos gêneros literários. Esta obra intitula-se Ars Grammatica e é atribuída a um autor do séc. III d.C., conhecido como Diomedes Grammaticus. A análise de um segmento do Livro III da Ars Grammatica permite verificar que o Renascimento conheceu primeiramente a divisão dos gêneros literários a partir das considerações que Platão faz sobre o assunto no Livro III da República, uma vez que é esta abordagem oferecida por Diomedes. As ideias de Aristóteles com relação a especificações técnicas da divisão dos gêneros — ausentes em Platão — não são mencionadas em Diomedes. Isso talvez se explique pelo fato de que as obras de Aristóteles se perderam durante o império Bizantino, época em que se assinala ter vivido Diomedes. Assim, tem-se que a profusão de estudos literários no Renascimento após a redescoberta da Poética se deva ao fato de que a referida obra de Aristóteles deveria ter sido muito aguardada e que muito provavelmente já era tida como uma abordagem mais completa com relação à tripartição de gêneros literários. Isso permite constatar que a grande impulsão dada à teoria literária neste assunto foi por causa do próprio Aristóteles e não pela falta de publicação sobre os gêneros literários no século XVI, o que pode ser demonstrado com provas documentais.

o   As lágrimas de Heráclito: relações entre autoria e intertextualidade — Patrícia dos Santos Silveira.
Este trabalho discute a relação entre autoria e intertextualidade a partir do ponto de vista do escritor. Sua problematização situa-se em como o autor de um texto literário contemporâneo pode se relacionar com a obra de outros autores tendo em vista o objetivo de criar uma obra original e autônoma, mas que ao mesmo tempo dialogue com as mesmas questões já colocadas em outras obras. Para desenvolver essa discussão, elabora-se uma reflexão sobre os processos de construção do texto teatral e da encenação de As lágrimas de Heráclito, os quais foram iniciados pela relação de intertextualidade com o texto homônimo de Antônio Vieira, escrito no século XVII. Relativamente à criação do texto cênico, tanto o texto de Vieira quanto os fragmentos de textos deixados por Heráclito foram fonte de inspiração para a elaboração dramatúrgica. Porém, o que pode permanecer de intertextualidade na construção de uma obra autoral? De que recursos o autor precisa lançar mão em sua escrita, principalmente quando o objetivo é o diálogo explícito com outras obras? Essas questões têm o objetivo de refletir sobre como o texto de um autor pode ser apropriado por outro na criação artística. Além disso, questiona-se sobre como os resquícios do texto anterior podem ser percebidos na nova criação. Inicialmente, pode-se dizer que o texto de natureza filosófica torna-se fala de um actante em nível ficcional. Dessa forma, sentidos que antes existiam como discurso linguístico são concretizados e transferidos para a linguagem cênica. O texto dramático e a performance teatral permitem que os sentidos sejam experienciados com linguagem verbal e não-verbal pelo leitor/expectador a partir de um universo ficcional, metafórico e plurissignificativo. Para o escritor, esse diálogo pode representar uma forma desafiadora de diálogo com a tradição e, ao mesmo tempo, constituir uma forma de atrito em que vários sentidos coexistem simultaneamente.


Sessão 9 — sexta-feira, 10/10, 11h30 às 13h, sala 205 (Prédio de aulas).
o   Andança pelas Canções Mexicanas, de Gonçalo M. Tavares - Kim Amaral Bueno.
Canções mexicanas (2011), de Gonçalo M. Tavares, reúne 27 contos produzidos a partir de uma visita do escritor português à Cidade do México. Narrados em primeira pessoa, os textos demonstram a sensibilidade do observador/caminhante sobre os eventos pitorescos ou simplesmente banais de uma cidade repleta de estímulos. Embora as instâncias de autor e narrador sejam inconfundíveis, é perceptível uma enunciação “europeia” a reverberar nos textos. Em entrevista ao projeto “Sempre um bom papo” (2013), cujo vídeo está disponível no YouTube, Tavares comenta sobre dois tipos de cidade: as que se constituem por inumeráveis estímulos por metro quadrado, como Marrakesh, São Paulo ou a Cidade do México; e, aquelas calmas, uniformes, como muitas cidades europeias, seja Lisboa ou Viena, por exemplo. As Canções mexicanas, ao retratar uma cidade pertencente ao primeiro grupo, coloca em movimento não apenas o observador que vaga pela cidade desconhecida, mas movimenta a própria cidade, de modo a produzir um texto que não se insere numa matriz meramente descritiva (fotográfica). A relação estabelecida entre o narrador observador e os lugares por ele “experienciados” são ofertados ao leitor em fatias de espaço nas quais o que se percebe é o movimento desde narrador, junto com as trocas entre ele e o lugar. Tal noção de movimento se fragmenta assim como o olhar que perscruta uma cidade tão vibrante e exuberante: o movimento de fuga de um cão esfomeado que devora músicos; o movimento no centro da cidade em busca da casa de Frida Kahlo; o movimento de escapar de ser pisoteado pelos milhões de mexicanos que formam a cidade. Assim, a aplicação de uma categoria que defino como “andança” para caracterizar a narração dos contos pretende entender a transposição deste movimento de experiência espacial à sua textualização.

o   Terras e águas ao sul — (topo)grafias do Outro em Terra Sonâmbula, de Mia Couto — Amilton Queiroz (doutorando) e Simone Lima.
Narrativa içada pela (topo)grafia dos resíduos, rastros e vestígios do reencontro entre pátrias imaginárias, Terra Sonâmbula (1992), de Mia Couto, trança solidariedades e cooperações entre África, Ásia e Europa, cartografando a experiência de personagens que rompem as fronteiras da Índia, Portugal e Arábia Saudita para (des)(re)territorializar olhares que rasgam o manto de invisibilidade jogado sobre a superfície das localidades, territorialidades e paisagens moçambicanas. O texto miacoutiano será lido a partir do horizonte teórico-metodológico de estudiosos como Homi Bhabha, Edward Said, Boaventura de Sousa Santos, Mary Louise Pratt, Walter Mignolo, Julia Kristeva, Tzvetan Todorov, Tania Carvalhal, Zilá Bernd, Maria Zilda Cury, Luis Alberto Brandão e Marli Fantini. Com o auxílio dessa sintaxe crítica, espera-se mapear os deslocamentos de personagens que saem de terras natais e se alojam na comarca cultural moçambicana para traduzir as territorialidades internas de seu imaginário híbrido. Inscrito na estrada de repactualizações embaladas pelo mapeamento dos rizomas da voz que veleja nas águas do próprio e alheio, o narrador-mediador de Terra Sonâmbula estampa o percurso de seres nômades, errantes diaspóricos que (re)escalam as muralhas do tempo pedagógico para registrar, performatizando, o encontro de vidas cujas saliências identitárias escorregam pelas brechas do olhar que cartografa espaços ao Sul da paisagem moçambicana — um estuário da poética da relação a partir do qual se promove o colóquio disjuntivo de latitudes reposicionadas para além da viagem à própria geografia, trançando múltiplos  (e)ventos da polifonia da diferença disseminada entre espaços dialógicos cujas fricções e atritos com o outro chancelam a (topo)grafia do outro na territorialidade literária miacoutiana.

o   O texto em movimento: as fronteiras desbordantes do Atlas do Corpo e da Imaginação, de Gonçalo M. Tavares — Maria Elisa Rodrigues Moreira.
A literatura do escritor angolano-português Gonçalo M. Tavaresse caracteriza por uma multiplicidade e instabilidade formal: há textos em diversos gêneros, e aqueles que dificilmente podem ser classificados em algum gênero, obras em que leitura, escrita e reflexão mesclam-se de maneira inextricável, textos híbridos que parecem se situar na fronteira entre a literatura e outras formas de pensamento e conhecimento. Seu último livro, Atlas do Corpo e da Imaginação, incorpora em sua própria estrutura esse movimento constante de passagem entre distintos espaços textuais: constituindo-se como um texto de caráter prioritariamente ensaístico, usa suas próprias margens para expandir essa perspectiva, fazendo-se acompanhar — ou sendo ele o texto segundo, o que acompanha — de outras duas textualidades. A primeira, uma série de imagens produzidas pelo coletivo Os Espacialistas, constituído por arquitetos portugueses, as quais estabelecem com o texto ensaístico um diálogo transversal. A segunda, textos narrativos em formato de legendas, breves ou longas, que acompanham as imagens do coletivo. É esse amplo conjunto textual, que possibilita entradas e saídas as mais diversas, que compõe o Atlas em questão, obra sobre a qual se pretende refletir nesta comunicação. Fazendo deste texto um espaço de travessia, um mapa a ser percorrido por meio de trajetos que instituem passagens entre a literatura e o mundo, a literatura e a ciência, a literatura e a filosofia, os movimentos que o leitor pode traçar pelo texto tavariano se desenham sobre fronteiras, avançando em direção aos mais diversos campos do saber e necessitando, para manter sua força motriz, criar-se no interstício dos discursos, numa região limite, num espaço de passagem em que a hibridez seja a garantia das possibilidades de movimentação dos saberes, de instituição de vizinhanças criativas para o conhecimento.

o   Sistemas e subsistemas: a literatura em movimento pelo espaço — Aline Brustulin Cecchin.
A literatura está em movimento através do espaço ao se organizar em sistemas e subsistemas, os quais consistem num conjunto de atividades inter-relacionadas que atuam nos meios de produção, circulação e prestígio literário. Conforme Even-Zohar (1990), além dos autores e de suas obras, as bibliotecas, as universidades, as editoras, a produção de fortuna crítica, a conjuntura econômica e social, entre outros elementos contribuem para a formação ou consolidação de uma paisagem literária em determinado tempo e espaço. Logo, são de interesse deste estudo, que busca compreender a literatura em suas condições sócio-espaciais, questões como o surgimento de obras e escritores, os meios de edição, comercialização e recepção dos livros, os espaços disponíveis para a publicação dos textos literários (periódicos, revistas, concursos), a criação de políticas culturais e locais de formação de autores e de seu público. O objetivo deste trabalho é verificar, assim, a consolidação de um sistema literário regional na Serra Gaúcha, localizada no estado do Rio Grande do Sul, Brasil, entre as décadas de 1950 e 1970. A análise realizada propõe, através da pesquisa em periódicos da região, a investigação acerca da “infraestrutura regional cultural e a interdependência de produção, distribuição e recepção da literatura” (STÜBEN, 2013).  Dessa forma, interessa compreender como se articulam as manifestações que promovem o sistema literário regional serrano. Para tanto, servirão como aporte teórico os estudos sobre região cultural (HAESBAERT, 2010; BERUMEN, 2005), literatura regional (POZENATO, 2003; JOACHIMSTHALER, 2009; ARENDT, 2012) e sistemas literários (EVEN-ZOHAR, 1990; CANDIDO, 2009; STÜBEN, 2013).

o   No princípio era o verbo — Ana Lúcia Beck.
Em 1526, Albrecht Dürer pinta Os Quatro Apóstolos. Na pintura a óleo sobre madeira, João e Pedro, Paulo e Marcos são apresentados em tamanho natural junto a trechos do Novo Testamento. Sobre posição entre dois espaços significantes, verbo e imagem estabelecem entre si significativas relações e constituem dois textos de imprescindível leitura na aproximação ao projeto estético do artista. Investigar tais relações nos permite descortinar movimentos, deslocamentos e intersecções entre ver e ler. Movimentos nas bordas do espaço, sobreposições e intersecções são valorizadas na medida em que ampliam o esforço crítico-analítico. Na pintura de Dürer, palavra e imagem estimulam trânsitos e desdobramentos entre o olhar e a leitura em acordo com a classificação tipológica elaborada por Clüver (2006) e Hoek (2006) na perspectiva dos Estudos Interartes. Segundo tais autores, palavra e imagem estabelecem relações de transposição, justaposição, combinação e união/fusão. Relações que procuraremos investigar em um olhar/leitura para Os Quatro Apóstolos considerada enquanto obra inserida em um contexto mais amplo de produção intermidiática. A edição de Apokalypsis cum figuris (1498-1511), assim como a versão alemã de Der Ritter vom Turn, de Geoffrey de La Tour-Landry (1493), entre outras, delimitam o contexto da produção de Dürer em consonância com obras artísticas dos séculos XX e XXI permitindo que se vislumbre a paradoxal riqueza poética no intervalo entre as artes visuais e a literatura. No âmbito de tal contexto intermidiático, inferimos o posicionamento crítico do mestre renascentista cujas concepções sustentam a vocação pedagógica de sua criação.


Sessão 10 — sexta-feira, 10/10, 11h30 às 13h, sala 217 (Prédio de aulas).
o   Passado e presente (e futuro), locais da memória em Traço de União, de João Maimona — Cláudia Mentz Martins.
João Maimona (1955), poeta, ensaísta e crítico literário, nascido em Kibokolona, Maquela do Zombo, na província do Uíge, em Angola, é considerado um dos nomes mais importantes nomes da literatura angola contemporânea. Sobretudo em algumas de suas primeiras obras como Trajectória obliterada e Traço de união, tem-se um eu lírico estarrecido mediante uma Angola destruída pela guerra civil ocorrida no pós-independência. Este trabalho deterá o olhar sobre Traço de união (1987), em que se observa um sujeito poético angustiado frente a uma realidade aflitiva. Ao mesmo tempo em que procura compreender a (nova) Angola e nela buscar inserção, utiliza a palavra para (re)inventar sua cultura e continuar a “angolar”. No seu presente, o passado está na memória em movimento, em que busca não apenas lamentar as tristezas dos fatos ocorridos, mas (re)construir a si e a seu país. Tais aspectos encontram eco nas afirmativas de Bhabba (2007: 341), em O local da cultura: “o passado como símbolo, mito, memória, história, o ancestral - mas um passado cujo valor iterativo como signo reinscreve as “lições do passado” na própria textualidade do presente, que determina tanto a identificação com a modernidade quanto o questionamento desta.” Na obra em pauta de Maimona, o processo histórico e a sociedade fragmentada exigem do poeta uma reflexão sobre sua realidade e seu território. O passado (vívido na memória) e o presente constituem temporalidades de ‘um agora’ a construir um futuro desconhecido. Nas palavras de Rita Chaves (2005: 62), em Angola e Moçambique: “o escritor de Angola tem o seu imaginário povoado por dimensões do passado e, quase sempre, o regresso a esse tempo anterior conduz o seu exercício de pensar a sua contemporaneidade e vislumbrar hipóteses para um mundo que, por razões diversas e em variados níveis, lhe surge como um universo à revelia.”

o   De mãe para filha: as vozes da memória em O Que os Cegos Estão SonhandoAmanda Dal’Zotto Parizote.
A representação da memória na literatura é uma área de estudos que tem crescido no cenário acadêmico brasileiro.Amparado pelos Estudos Culturais, esse campo de análise traz consigo o exame de conceitos com o tempo da memória e da narração,memória individual e coletiva, memórias subterrâneas, entre outros. Um gênero textual que permite a emergência de questões como as previamente citadas é o diário.Popularizado no início do século XX, ele surge como uma modalidade de escrita do eu em que, por consequência, as memórias ganham espaço.Parece, assim, ser natural que os diários deem corpo a narrativas testemunhais, dentre elas as nascidas em meio a eventos de barbárie, como o Holocausto, por exemplo. Desse modo, este trabalho tem como objetivo analisar a representação das memórias em O que os cegos estão sonhando(2012), de Noemi Jaffe, narrativa que traz os diários da mãe dela,a sérvia judia Lili Jaffe. A obra é o registro dos onze meses que Lili passou em Auschwitz e divide-se em duas partes: a primeira traz o diário de Lili; a segunda, as análises de Noemi acerca das memórias da mãe.Para a análise, são apresentadas reflexões sobre questões referentes a sujeito de enunciação, pacto de leitura e voz autoral, apontando, também, características que transgridem o gênero textual diário. No que concerne mais especificamente à representação da memória, aborda-se, aqui, de que modo ela é ficcionalizada e como ela é transmitida de mãe para filha, levando à análise do papel de Noemi enquanto mediadora das memórias da mãe e, por conseguinte, da constituição da pós-memória.

o   O resgate do passado e a organização dos fatos em Infância de Graciliano Ramos — Michele Savaris.
O intuito deste trabalho é realizar uma análise da obra Infância de Graciliano Ramos observando as tentativas de resgate do passado por parte do narrador-personagem, sob a ótica da memória e delinear sua aproximação com a fotografia associada ao álbum que denota um espaço de registro e organização.  A recuperação do passado está associada a imagens que sobreviveram à passagem do tempo devido ao fato de que algo permaneceu no momento da experiência. Assim, o fato de o narrador-personagem de Infância recuperar suas experiências, só se tornou viável tendo em vista a permanência dessas imagens e impressões. O caráter memorialístico está ancorado em eixos como: a experiência (tudo o que o narrador viveu); a memória (a invocação a essas experiências); e a escrita (um modo de organização de todas os fatos que só vêm à tona por causa do mecanismo da memória). Ao longo da obra observa-se que a recuperação dessas memórias apresentam-se como se fossem pequenas imagens fotográficas, cujo contexto vai sendo revelado pouco a pouco. Os diversos capítulos que compõem Infância fogem à ordem cronológica e podem ser lidos de maneira independente. O modo como Graciliano Ramos constrói a narrativa em questão, permite que a comparemos com um álbum fotográfico, cujas imagens constituem-se em instantes desconectados, mas que podem, de algum modo, (re)estabelecer a devidas conexões. Um álbum ao agrupar as fotografias, gera coerência, lógica e unicidade e consegue ordenar tudo o que está fragmentado, estabelecendo uma sequência que evita o caos (ROUILLÉ, 2009). Assim, a obra Infância de Graciliano Ramos pode ser entendida como uma forma de invocação, recuperação e organização do passado. Ainda que todas as experiências tenham ocorrido numa ordem natural, recuperá-las implica a análise e a reorganização individual.

o   Autoria e memória em Sei Shônagon — Andrei dos Santos Cunha.
O Livro de Travesseiro, de Sei Shônagon (Japão, séculos X–XI), é um texto que pode ser lido como extremamente moderno: é fragmentário, questiona e reconfigura gêneros e categorias, e se baseia em uma persona/narradora central com uma presença dramática, individualista, e definida como em permanente crise. São essas características que permitem, por exemplo, que o livro seja retomado pelo cinema na pós-modernidade (Greenaway, 1996). Ao mesmo tempo, trata-se de um texto de caráter memorial, autobiográfico e (ainda que não fique claro em uma primeira leitura) elegíaco, uma homenagem e testemunho de uma época que já se encerrara no momento da escritura. É um texto híbrido, que se encaixa com dificuldade em noções despersonalizadas de autor. Miner (1990) propõe que se leve em conta a poética japonesa como base para uma interpretação da voz autoral dessa época e lugar. A poética japonesa, baseada na lírica, estaria mais próxima do “il n’y a pas de hors-texte” de Derrida (1967) do que da “mort de l’auteur” de Barthes (1968) e Foucault (1969). O presente trabalho busca discutir os pressupostos que permitem ler O Livro de Travesseiro como, por um lado, autoficção, e, por outro, como escrita de testemunho, e como as diferenças entre a maneira de ler no Japão e no Ocidente têm consequências importantes para a nossa concepção de autoria e verdade no texto literário. Alguns trechos do livro são propostos como exemplos e discutidos a partir de modalidades como narrativa, ficção e testemunho, de maneira a esclarecer como esses conceitos podem se articular na leitura contemporânea.


Sessão 11 — sexta-feira, 10/10, 14h30 às 16h, sala 205 (Prédio de aulas).
o    O gaúcho em carne, tinta e bronze — Tiago Pedruzzi.
O trabalho tem como escopo uma análise comparada da representação do gaúcho na literatura e a sua posterior transposição aos monumentos da cidade de Porto Alegre. A representação do gaúcho começa na literatura brasileira no século XIX e, assim, temos seu ingresso no mundo urbano. No entanto, sua representação estatuária ocorre no Rio Grande do Sul, mais particularmente na sua capital, Porto Alegre, a partir do século XX, demonstrando certo descompasso entre a representação literária e a representação laudatória ou memorialística emanada dos conjuntos escultóricos da urbe. É sabido que existe farto material sobre a representação do gaúcho na literatura sul-rio-grandense e também na literatura platina. Porém, pouco se produziu a partir de um estudo interdisciplinar do diálogo, das semelhanças ou das diferenças destas representações com outras artes como, por exemplo, a estatuária. Nesse trabalho será feito um breve percurso descritivo das principais representações do gaúcho em cidades importantes da comarca pampeana tais como Montevidéu e Buenos Aires. Dentre as poucas representações escultóricas do gaúcho existentes na cidade de Porto Alegre destaca-se O Laçador, obra de Antônio Caringi, vencedora de concurso público para representar o Rio Grande do Sul na exposição do quarto centenário de São Paulo, realizada no Parque Ibirapuera da referida cidade. A estátua assumiu o papel de representante da memória coletiva dos sul-rio-grandenses, rurais ou urbanos, sendo uma espécie de totem identitário frente a outras representações menos populares ou mais urbanas do indivíduo nascido no Rio Grande do Sul. Para finalizar, analisaremos que aspectos representativos do gaúcho a obra em bronze compartilha com as representações literárias deste tipo social e histórico.

o    A Margem Imóvel do Rio: espaço e identidade — Izandra Alves e Marcelo Lima Calixto.
O deslocamento territorial dos povos marca transformações importantes tanto em questões geográficas quanto culturais. Nesse sentido, é preciso ver e analisar o mundo através das relações que as pessoas — mesmo que sejam oriundas de um espaço diferente — estabelecem com a natureza, com o meio ambiente, além dos sentimentos que as mesmas mantêm sobre o espaço e lugar habitados. O espaço influencia diretamente a vida das pessoas, deixam marcas, impressões, opiniões. Conforme vai se modificando, da mesma forma, mudam o modo de agir daqueles que ali estão. Também os que trocam constantemente de espaços, ou seja, os viajantes, os estrangeiros, que se deparam com o novo, com o diferente, são desafiados a adequarem-se aos novos lugares, ou então, são encorajados a modificá-los. Tudo isso possibilita a reflexão acerca das relações sociais presentes nos ambientes em que se evidenciam relações culturais, sentimentais, experiências diversas, percepções, etc. Assim, discutir territorialidade possibilita grandes contribuições para que se compreenda o espaço como espaço de vivências, pois sendo ele habitado por filhos da terra e também por estrangeiros possibilita os múltiplos olhares, as diferentes percepções sobre o mesmo lugar, o que converge para o enriquecimento cultural. Como forma de discutir esse deslocamento do estrangeiro de seu lugar de origem para outro continente com o espírito desbravador e aventureiro, pretende-se analisar a obra A margem imóvel do rio, do gaúcho Luiz Antonio de Assis Brasil. Dessa forma, muito mais do que por em cheque questões territoriais, há aspectos culturais que merecem ser apontados, elementos esses muito importantes na construção da identidade tanto do estrangeiro quanto do nativo.

o    Pensando a literatura como lugar de memória: um estudo de caso do romance SatolepMarlise Buchweitz Klug e Tatiana Bolívar Lebedeff.
O romance Satolep, do escritor pelotense Vitor Ramil, traz como personagem da narrativa a cidade de Pelotas, além de ser este o lugar no qual transcorrem as andanças do personagem Selbor. Num misto de ficção e fatos reais, consegue-se perceber a história da cidade em determinada época — o início do século XX. A partir de uma análise da narrativa ficcional integrada pelas fotografias de lugares da cidade de Pelotas e pelos relatos referentes às fotografias escritos por diferentes narradores ficcionais, busca-se comprovar teoricamente que este romance é um lugar de memória — da memória coletiva dos habitantes e da memória individual do escritor e do narrador, e que coopera para o registro de dados que podem estar fadados ao esquecimento. A leitura de análises críticas de diferentes campos do saber, tais como a História, a Antropologia, a Arquitetura e o Urbanismo, a Memória e o Patrimônio, a Literatura, através de autores destas ciências tornará possível o estudo de caso em questão.Em relação a esse intento, pode-se dizer que se constituirão objetos de investigação da pesquisa algumas questões que são: a cidade no presente e no passado e sua relação com o indivíduo, a história da cidade, a memória, o espaço e o contexto da cultura, a troca de significação no tempo e no espaço da paisagem urbana, a configuração de cidade feita pelo escritor na literatura a partir de um lugar real, tudo isso para resolver a questão inicial que este trabalho propõe analisar: a Literatura é lugar de Memória Social?

o    O espaço e a memória: a ressignificação da subjetividade — Giele Rocha Dorneles.
É pela memória que o sujeito compreende a história, e o espaço da memória e sua compreensão configuram uma busca do eu e do significado do vivido. A memória se constitui de tempo e o tempo se constitui do espaço, pois é pela elaboração dos lugares que ela se estabelece. A memória dos lugares, tanto pelo aspecto da espacialidade (places) e do espaço geométrico (sítios), conforme Ricoeur (2012), entrecruzam o íntimo do sujeito e medeiam a lembrança. Nesse aspecto, só é possível elaborar a memória a partir de um tempo (em relação ao eu) do agora pela elaboração do espaço constituído, pois de acordo com Ricoeur (2012, p. 59) “o corpo constitui, desse ponto de vista, o lugar primordial, o aqui em relação ao qual todos os outros lugares são lá”. A errância que se estrutura desse entrevir emocional compõe a essência do sentimento de deslocamento, a partir do qual a memória busca ressignificar a sua história.   Distanciado pela memória o eu tem a liberdade de analisar o vivido e dele fazer observações mais ou menos objetivas. Nesse contexto de análise, as obras “Fora do lugar: memórias”, de Edward Said, e “As pequenas memórias”, de Jose Saramago, entre outras, são bastante produtivas por estabelecerem em suas narrativas a percepção do eu em relação a um espaço-tempo ulterior ao sujeito, que ao se fazerem ilustradas no espaço das letras, configuram, entrelaçam e deslizam as questões de identidade e diferença pelo sentimento de “não-pertença” e busca de completude. Escrever a memória, registrar a sua história é um modo de elaborar essa incomunicabilidade entre o sujeito do agora e o sujeito da memória. O espaço dessa relação formula o próprio texto em suas páginas mais íntimas, e permite ao Outro compor o intrínseco papel que o passado tem na elaboração da subjetividade.


Sessão 12 — sexta-feira, 10/10, 14h30 às 16h, sala 217 (Prédio de aulas).
o   Literatura e espaço: um estudo sobre a representação da paisagem na poesia do Rio Grande do Sul — Antônio Carlos Mousquer.
O presente trabalho é parte do resultado de uma pesquisa de Pós-Doutoramento desenvolvida durante o ano de 2013, junto ao centro de pesquisas Écritures de la modernité da Université Sorbonne Nouvelle — Paris 3, sob supervisão do professor Michel Collot.  A investigação constituiu-se de um estudo teórico acerca da poesia tendo como fundamento principal as ideias desenvolvidas pelo referido professor sobre as relações entre a literatura e a paisagem. A partir da compreensão do poema como espaço de abertura e opondo-se às teorias textualistas, Collot busca, na estética da recepção e na fenomenologia de Husserl e de Merleau-Ponty, a noção de horizonte, compreendido como a estrutura que rege a constituição do sujeito, a sua relação com o mundo e a prática da linguagem. Vem daí a ideia de paisagem, uma construção cultural imagética sobre o espaço e uma constatação recorrente no conjunto de poemas contemporâneos franceses estudados pelo teórico. De forma homóloga, a análise da produção poética do Rio Grande do Sul demonstra que, de forma frequente, o tema da paisagem aparece na sua produção poética. O estudo aqui proposto teve como objeto de análise a poesia concebida, a partir da década de sessenta do século passado, por um grupo de poetas na região sul-rio-grandense de colonização italiana, conhecido como Grupo Matrícula. Do Grupo faziam parte, Oscar Bertholdo, José Clemente Pozenato, Jayme Paviani e Ary Trentin. O estudo tomou o conjunto da obra dos referidos poetas para refletir sobre a visualidade dos espaços físicos e imaginários no poema e para verificar como a transformação dos dados vivenciais em matéria poética é uma experiência representativa da criação lírica, conforme aponta Collot, e um dado relevante para o levantamento de questões ligadas à constituição do sujeito e à prática da linguagem.

o   A diluição das barreiras interartes: uma proposta educacional e o relato da experiência do Grupo CancioneirosNathalia Pinto e Vinicius Rodrigues.
O povo nordestino sempre foi essencialmente migrante: o flagelo da seca e o consequente abandono legado à região fizeram do Nordeste um espaço acostumado a partidas e regressos. A partir dos anos de 1940, com a massiva industrialização do Sudeste, levas de nordestinos, mão de obra barata e não especializada, passam a sonhar com novas oportunidades, motivados pela urgente demanda de força de trabalho. O seu drama tem espaço na literatura e canção brasileiras há muito tempo, é longa e sólida a tradição artística que retrata e reflete esse povo e cultura. O texto cancional popular, reconhecido como altamente capaz de comentar o espaço-tempo do país (parafraseando Arthur Nestrovski) tem se dedicado a revelar ao Brasil, tanto quanto o texto literário, a realidade socioeconômica da região. A trilogia do escritor baiano Antônio Torres, formada pelas obras Essa terra, O cachorro e o lobo e Pelo fundo da agulha, através da trajetória de Totonhim, um migrante que sai do interior da Bahia rumo a São Paulo, narra os diferentes momentos da migração: a idealização do espaço urbano, a decisão de partir, o preconceito sobre os nordestinos nas grandes cidades e, por fim, o sentimento de estraneidade com qual ele convive na metrópole. As canções de Luiz Gonzaga, o dito Rei do Baião, permeiam toda a obra de Torres em citações, pois é com elas que o escritor ilustra a saga de suas personagens. Gonzaga é o artista que melhor usou sua sonoridade (voz, letras, melodia e recursos sonoros que remetem ao espaço Nordeste) e persona para falar ao migrante instalado na metrópole, representando, assim, um elo afetivo e identitário direto com sua terra. Através de uma abordagem intertextual, o trabalho pretende mostrar como literatura e canção se aliam para reatualizar o tema da migração na ficção contemporânea.

o   Hilda Hilst: um salto do objeto literário à teatralidade das palavras — Camila Alexandrini.
Maurice Blanchot (2005, p.300) afirma que “a experiência da literatura é ela mesma experimento da dispersão, é a aproximação do que escapa à unidade, experiência do que é sem entendimento, sem acordo, sem direito — o erro e o fora, o inacessível e o irregular”. Nesse sentido, as linhas dos textos de Hilda Hilst, nesta análise, se disseminam à medida que a obra é a espera da obra, espaço movediço no qual se verifica a pluralidade do objeto literário, bem como dos sentidos dele advindos e das relações intersubjetivas que ali se espacializam. Sendo assim, a escritura não é encaminhada a uma totalidade, mas ao deslocamento, à teatralidade das palavras em que cada leitor atua a partir do texto literário. Como mesmo aponta Blanchot (2005, p.305), “sabemos que só escrevemos quando o salto foi dado, mas para dá-lo é preciso escrever, escrever sem fim, escrever a partir do infinito”. Correm-se diversos riscos em dar o salto ou em provocar o salto no outro — Hilst, aliás, bem reconhecia tais riscos e não os evitava. O salto não depende de sua altura, o que ele precisa é deixar de ser e, assim, ser o que ainda não é. Dito de outra maneira, por meio do fortuito diálogo entre as artes e a literatura na contemporaneidade, busca-se compreender a palavra na obra de Hilda Hilst revestida de uma teatralidade, através da qual seja possível revisitar e, em certa medida, desconstruir saberes agenciados pela teoria da literatura, isto é, provocar deslocamentos no entendimento do literário em sua comunicação com outras linguagens. Estabelecida em um espaço limiar, a palavra em Hilst se encaminha a demarcações fluídas do território da literatura, direcionando-se a espaços híbridos de estudo e crítica, acionados pelo leitor que deseja saltar da página, saltar a página, saltar-se.

o   Um ilustrador da vida moderna na periferia da literatura — Vinicius da Silva Rodrigues.
Will Eisner é considerado um dos mais significativos autores das histórias em quadrinhos. Com a obra “Um Contrato com Deus” & Outras Histórias de Cortiço, Eisner tornou-se um dos responsáveis por renovar as possibilidades de se contar histórias através dos quadrinhos,popularizando o termo graphic novel — supostamente, um novo formato, mais próximo da literatura. A obra, a primeira de uma trilogia que viria a ser finalizada com os livros A Força da Vida e Avenida Dropsie, traz como proposta conceitual a visão acerca da vida na periferia da grande cidade, assim como suas constantes transformações — que irão modificar a paisagem urbana, na mesma medida em que reconstroem as relações entre os indivíduos (e eles próprios). Mais do que um elemento dentro da estrutura narrativa, o espaço adquire feição identitária na obra deste narrador gráfico e é um elemento fundamental em sua poética, não só nas obras supracitadas, mas também em outras, como Nova York — A Vida na Grande Cidade, onde o tratamento evidencia igualmente uma visão subjetiva sobre o espaço e seus elementos mais característicos. No diálogo entre a chamada “Trilogia do Contrato com Deus” e A Vida na Grande Cidade, entretanto, há tensões e confrontos, seja quanto ao imaginário urbano que se projeta sobre a mesma metrópole, seja quanto às possibilidades comunicativas da linguagem artística em questão. Considerando tal ponto de partida, este trabalho prima pela análise do projeto estético de Will Eisner contido nessas obras e observa em que medida o olhar do autor sobre os personagens e seu espaço urbano demonstra singularidades. Atentando, igualmente, para os aspectos iconográficos, procura-se discutir o conceito de graphic novel, hoje amplamente divulgado, mas que teria em Eisner um precursor, e que, nesse diálogo terminológico com o literário, intensifica outras tensões.