Ilha 4 — Ilhas políticas: democracia e suas narrativas

ILHA 4
ILHAS POLÍTICAS:
DEMOCRACIA
E SUAS NARRATIVAS
Antonio Barros de Brito Junior
e Antonio Marcos Vieira Sanseverino


“Brasília é uma ilha eu falo porque eu sei, uma cidade que fabrica a sua própria lei”. Assim era definida a capital brasileira em 1995 pela banda Os Paralamas do Sucesso. Nesses versos da canção havia mais do que a acusação de um problema estrutural da política nacional; havia também, pelo que se observa hoje, uma espécie de visão profética sobre o modus operandi político global. Atualmente, o que se nota mundo afora é um recrudescimento dos movimentos nacionalistas e da xenofobia, e, portanto, uma intensificação das chamadas “políticas de fronteira”. Cada vez mais os países buscam isolar-se das populações vizinhas a fim de barrar as levas migratórias de trabalhadores e refugiados, assumindo os traços mais pronunciados de um Estado policial. Não por acaso, o nefasto “muro do Trump” transforma-se em um emblema da política internacional contemporânea, que Michael Hardt e Antonio Negri resumiram no célebre livro Império (2000). 
            Trata-se, porém, de um fenômeno que, como já apontava a canção, ocorre também no âmbito nacional, manifestando-se mais claramente na “lógica do condomínio”, que, de acordo com Christian Dunker, em Mal-estar, sofrimento e sintoma (2015), tem a ver com o encastelamento da população de classe média e alta entre os muros e grades dos condomínios fechados, com uma intensificação e um consequente recalque violento do mecanismo que produz a subalternidade. Assim, as democracias esfacelam-se face às crescentes e distintas violações dos direitos humanos, e o princípio comunitário, libertário e igualitário, que teoricamente impulsiona a democracia para a comunidade infinita (cf. Jean-Luc Nancy, Finite and infinite democracy, 2011), cede lugar a uma renovada mitologia da seguridade (cf. Andrea Cavalletti, La città biopolitica, 2005), que aprofunda a faceta biopolítica do estado liberal, subordinando os dispositivos governamentais ao espaço geográfico do poder e sujeitando os indivíduos ao arbítrio da violência física ou simbólica. Em vista disso, pode-se falar metaforicamente em um processo de insularização, que repercute politicamente de diferentes modos, em particular nas clivagens entre os distintos sujeitos capturados em um antagonismo político ou ontológico qualquer, acirrando as diferenças e delimitando zonas de confluência ideológica de acordo com características sociais, culturais, econômicas, raciais e de gênero. 
Neste contexto, a literatura e o cinema apresentam-se ao mesmo tempo como sintoma e como ruptura. Por um lado, as narrativas literárias e cinematográficas percorrem os diferentes espaços, oferecendo enquadramentos tão diferentes quantas são diversas as experiências de vida em qualquer um dos lados das fronteiras (ou até mesmo em seus interstícios). Por outro lado, essas narrativas conjuram o princípio democrático da igualdade e da emancipação, promovendo subjetividades e identificações mediante a potência poética do fazer ver, fazer dizer e fazer sentir (cf. Jacques Rancière, Le partage du sensible, 2005). Em um caso, o esquadrinhamento ontológico das diferenças em chave antagônica, num horizonte político de hegemonia e contra-hegemonia. No outro caso, a ruptura com os ditames sociais e políticos de quem pode e quem não pode fazer uso da palavra poética para fins de representação, subjetivação e reivindicação política. Em ambos os casos, a literatura mostra-se como o ponto de convergência do político, na medida em que restaura, temática ou operacionalmente, os princípios democráticos subjugados pelo policiamento político praticado pelos Estados e grupos hegemônicos e autoritários. 
Neste simpósio, serão acolhidos trabalhos que de alguma forma estabeleçam as conexões entre a literatura, o cinema e a democracia, sejam aqueles que abordam sob a ótica identitária os diferentes processos de insularização e os diferentes confrontos deles decorrentes, sejam ainda aqueles que entendem as narrativas literárias e cinematográficas como um atravessamento de espaços e fronteiras, ou seja, como uma redefinição política do sensível através de uma repartilha poética dos sujeitos e dos seus lugares de pertencimento na esfera pública e no campo político.

HORÁRIOS E LOCAIS DAS APRESENTAÇÕES

I. 9 de outubro, das 11h30min às 13h — LOCAL: SALA 205

I.1 Questões de princípio: literatura, política e representação, Antonio Barros de Brito Junior
I.2 Poesia, a balbúrdia no pensamento: reunir-se para resistir, Diego Lock Farina
I.3 A linguagem do amor: uma sílaba fraturada, uma imagem transbordada, Cláudia Luiza Caimi

II. 9 de outubro, das 16h às 17h30min — LOCAL: SALA 205

II.1 A ironia enquanto artifício da redefinição política, Jefferson José Pereira Figueiredo
II.2 O fazer literário e a literatura em Elizabeth Costello, Rodrigo Gonçalves Lima
II.3 Memórias de um sobrevivente, o real e a ficção, Tiago Lopes Schiffner

III. 10 de outubro, das 10h às 11h30min — LOCAL: SALA 214

III.1 A caça às bruxas e a política: uma análise comparativa da peça As Bruxas de Salém, de Arthur Miller, e sua adaptação cinematográfica, Luiza Pitrez Gressler e Thamise Silva da Rocha
III.2 Orgulho, preconceito e representação: o panorama histórico e social da sociedade inglesa de meados do século XIX em Jane Austen, Patrini Viero Ferreira
III.3 O enclausuramento e silenciamento de Maria do Rosário Imaculado dos Santos em uma sociedade branca, racista, patriarcal e hegemônica, Luciane de Lima Paim

IV. 10 de outubro, das 16h às 17h30min — LOCAL: SALA 205

IV.1 Negro e pronto: a representação do negro na poética de Cuti, Jacqueline de Almeida
IV.2 “Aquela coisa de sempre”: metodologia crítica e continuidade histórica, Giovani Buffon Orlandini
IV.3 As mulheres no espaço da fábrica: Parque industrial, de Patrícia Galvão, Bárbara Loureiro Andreta e Rachel Loureiro Andreta

V. 11 de outubro, das 11h30min às 13h — LOCAL: SALA 205

V.1 Vozes narrativas em contra-canto: a literatura de testemunho na ficção brasileira pós-64, Abilio Pacheco de Souza
V.2 “Para proteger os justos da justiça”: política, testemunho e ficção em Redoble por Rancas, Rodrigo Cézar Dias
V.3 Sebald e o peso ético-estético da literatura de restituição, Davi Alexandre Tomm

VI. 11 de outubro, das 16h às 17h30min — LOCAL: SALA 206

VI.1 “Ilha das Flores”: uma leitura da imagem através de Jacques Rancière, Marinice Argenta
VI.2 “Vai ter luta?”: Aquarius e algumas narrativas sobre o cenário político brasileiro no pré-golpe de 2016, Octávio Augusto Linhares Garcia Reis
VI.3 Desterro e passagem do tempo em A cidade onde envelheço (2016), de Marília Rocha, Amanda Lauschner

RESUMOS DAS COMUNICAÇÕES

I. 9 de outubro, das 11h30min às 13h — LOCAL: SALA 205

I.1 Questões de princípio: literatura, política e representação (1)
Antonio Barros de Brito Juniorantbarros@gmail.com

Tradicionalmente a ideia de uma literatura política está associada à noção de engajamento. Tomar partido, seja o próprio, seja o de outrem, consiste, para a corrente de pensamento político herdeira do materialismo histórico e de suas linhagens políticas mais ou menos ortodoxas, em representar as aflições, desenganos, ideologias, anseios, reveses próprios (o sujeito enquanto representante de uma classe) ou dos subalternos (o sujeito como mediador intelectual entre as classes). Nesse sentido, a política da literatura está diretamente associada ao espelhamento, em chave retórica e mimética, dos vários segmentos sociais, em suas diferentes (próximas ou distantes) relações históricas e contextuais. Porém, muitas vezes esse entendimento da política literária favorece o engessamento das diferenças e o esgarçamento da desigualdade. Logo, nesse viés, o engajamento político-literário pouco se diferencia da afirmação quase metafísica de um regime de possibilidades (o esquadrinhamento sociológico dos sujeitos) que, em última análise, parece contrariar a potência poética do indivíduo. Trata-se, enfim, de uma literatura que representa o representante ou que representa o representar.
Contra isso, a voz de Jacques Rancière eleva-se de modo incontestável: primeiramente, refutando o viés retórico-mimético ao qual a literatura política supostamente se subordina, como se houvesse uma espécie de regime estético único e determinista para o desenvolvimento poético do dano político. Em segundo lugar, Racière envolve a literatura e a política de modo inextrincável, de forma que as questões relativas ao engajamento político não são decorrentes da mimese, mas sim da poiesis (ou, em outras palavras, da aisthesis), ou seja, de pôr em relação modos de ver, fazer, criar agenciamentos estéticos que reafirmam uma subjetivação política com base na igualdade e na emancipação. Nesta comunicação, portanto, abordaremos as questões de princípio envolvidas na subjetividade política no plano estético-literário, dando especial destaque ao problema da representação, o que ela comporta e os diferentes trânsitos da letra nas altercações intersubjetivas naquilo que Rancière define como “cena política”.

I.2 Poesia, a balbúrdia no pensamento: reunir-se para resistir (2)
Diego Lock Farina, diegolockfarina@hotmail.com

Uma cena insular se faz presente quando as políticas nacionalistas, recém fortalecidas e intolerantes, reafirmam fronteiras: xenofobia, estado policial, muros e encastelamento são palavras de ordem da volta à ilha, isola, isolar-se. Afirmar a fronteira é entretanto tensionar o front: front da guerra liberal pela qual o mercado dita e promete segurança, ao preço que bem sabemos. Mas cabe ao termo front outros sentidos: faire front, em francês, quer dizer “reunir-se para resistir”. Courber le front (a testa) é “submeter-se”, enquanto que avoir le front é “ter audácia de”. Um jogo entre expressões para irrevogável pergunta: que democracia há na ilha? No mar que envolve e ameça a isola, barcos da Líbia desaparecem antes da costa italiana. Notícia de naufrágios que, por um dia, o jornal en-cadeia. Gonçalo Tavares lembrava o ditado antigo: “ao inventar-se o barco, inventou-se o naufrágio”. Os direitos humanos (cada vez mais para humanos de direita), as políticas de diferença e o princípio comunitário, solidário, igualitário tendem juntos a também naufragar? Faire front a isso, com audácia e risco, a partir de novas “partilhas do sensível” (RANCIÈRE, 2005) anuncia-se como tarefa. E se a tarefa demanda impetuosidade, demanda portanto poesia. Levante, balbúrdia no pensamento: a poesia resiste ao movimento de buscar segurança; é febre, festa, maltrata a língua, afia estilos, esburaca, faz sair fora de si, sobretudo ao associar-se, num elã, à filosofia (NANCY, 2000). Liber, no latim: livre e livro - feliz genealogia. Assim, a literatura arrasa o espaço da fronteira, mesmo num tempo em que se expulsam outra vez os poetas da pólis-isola. À deriva, questionamos: nunca foi, nesses últimos anos, tão crucial – como resposta responsável – reafirmar o “agonismo” (MOUFFE, 2015) entre direita e esquerda? Nós/eles: adversários, porém não inimigos. Na crise profunda, um partage autêntico devém urgente: “uma divisão entre os que desejam se arrastar dentro dos velhos parâmetros e os que têm consciência da mudança necessária” (ZIZEK, 2017, p. 170). Pois desconfiemos das políticas de consenso: para triunfar, a democracia exige um choque entre posições políticas legítimas. Se tais questões ora parecem desconexas, isso ocorre porque a medida que esse ensaio busca é senão poética, irruptiva. Poesia de um faire front que denega a submissão, em nome do ser que vem - o “ser qualquer” [qualunque] (AGAMBEN, 2013). Entre pertenço, logo derivo poeto, logo emancipo é que esse ensaio, afora, inscreve-se.

I.3 A linguagem do amor: uma sílaba fraturada, uma imagem transbordada (3)
Cláudia Luiza Caimi, claudialuizacaimi@yahoo.com.br

Esta comunicação pretende compartilhar uma leitura/reflexão da obra El infarto del Alma, que a escritora chilena Diamela Eltit publicou, conjuntamente com a fotógrafa Paz Errazuriz, em 1999. O livro é um dizer, uma fala, uma música, um jogo entre idiomas e caligrafias, um agenciamento em que se cruzam recursos polinizados pela imagem e pela palavra, entre o vivido/real e o lido/escrito. Eltit escreve a partir de uma nova estrutura na qual o descentramento, que se origina na fragmentação, inclui desterritorializações e redesenhos rizomáticos. Seu diário conversa com diversos gêneros: carta, ensaio, fragmento autobiográfico, transcrição de sonhos. A escrita oferece uma multiplicação discursiva em rede, não há hegemonia de gênero discursivo ou imagético. Também não há linhas divisórias claras que prolongam a distinção entre ficção e realidade. O que há são mesclas divisórias, cumplicidades, referências mútuas. Tudo inicia com uma viajem que a escritora faz, acompanhando a fotógrafa, ao Hospital Siquiátrico del Pueblo de Putando, nos arredores de Santiago, no Chile. Paz Errazuriz vai tirar fotos dos casais de namorados, encerrados no hospital psiquiátrico como pacientes crônicos, indigentes e mutilados. Pacientes esquecidos, entregues “a la caridade rígida del Estado”. Dessas fotos e da experiência dessa visita emerge uma foto-e-grafia que interpela a condição do homem, a partir do homem amoroso.
O corpo narrativo engendrado na tessitura da memória e seu enquadramento fotográfico desafia a escrita literária e o cerceamento do “amor louco”, num procedimento de narração em que se desdobram questões de cunho ético e político. Os loucos enamorados do hospital psiquiátrico introduzem, para a autora, a fratura que carrega consigo todo ser humano, a falta, num solo ruinoso e marginal, e, ao mesmo tempo, luminoso, enquanto revelador do destino humano. Apesar da miséria, do anonimato, da solidão, do estado de deformidade e extravio que cercam os alienados, eles amam, ocorre o amor neste espaço de todo esquivo para os sentimentos. São eles sujeitos animados pela falta, pela ausência que se apresenta como uma fatalidade e pelo protagonismo do desejo, que produz uma narrativa, a história. O louco, mesmo tendendo a fundir-se, a confundir-se, com o Outro, já que ausência de limites é a grande falta que marca o desaparecimento de fronteiras, é o corpo no qual a potência amorosa apresenta sua plenitude e tática, pois nela os signos amorosos abrem mão para um universo próprio, em que a realidade está ausente e presente ao mesmo tempo. Como diz a autora “Los asilados son materialmente un otro, abiertos a camuflarse (a refugiarse) al interor de cualquier cuerpo, a adentrarse en cualquier mente, a habitar em el otro a cualquier costo”.
A linguagem do amor, cuja escrita emerge de um espaço deslocado do eixo comum de produção das imagens amorosas e mundanas, espaço de reclusão e exclusão, explicita-se, então, nos termos de uma crítica política, em que o estético promove a desestabilização das visões homogêneas do mundo e da própria literatura, possibilitando a atenção aos espaços e condições em que os textos criam desvios e vazios, vinculando-se a modos de vida e à construção de novas subjetividades, visibilidades e inteligibilidades do mundo.

II. 9 de outubro, das 16h às 17h30min — LOCAL: SALA 205

II.1 A ironia enquanto artifício da redefinição política (4)
Jefferson José Pereira Figueiredojjpfig@gmail.com

Ao pensar as narrativas contemporâneas, a quebra de padrões estabelecidos (seja em abordagens, temas, tópicos, entre outros) se faz visível. O período atual, chamado de pós-modernismo por alguns teóricos, se faz plural e joga com estes padrões ao reorganizá-los e misturá-los com o intuito de mostrar suas falhas e lacunas, quebrando barreiras e trazendo novas questões a velhos fatos. Ao redimensionar as formas, por exemplo, o romance pós-modernista questiona de forma irônica o status quo e as grandes narrativas/ideias totalizantes. E se o faz de forma irônica, é, pois, consciente de ser um produto histórico tanto quanto outras leituras e faz-se, assim, consciente de seus limites e contradições. Portanto, a ironia serve como tática de abordagem e alerta para que não se caia no risco de se criar uma narrativa totalizante, sem que se negue suas idiossincrasia ou as contradições que dela surgem. 
Assim, a teórica canadense Linda Hutcheon aponta a metaficção historiográfica como uma das vertentes desta abordagem irônica no pós-modernismo. Quebrando barreiras em vários níveis (ao nível histórico, ao tratar sobre as leituras que temos do passado; estrutural, ao unir o gênero romance histórico e a metanarrativa para criar um novo efeito e poder gerar a nova leitura do fato histórico), o romance de metaficção historiográfica se recusa a resolver as contradições do que Lyotard chama de grandes narrativas totalizantes. Antes, seu objetivo é a problematização da questão ao dar voz aos excluídos ou àqueles que nestas grandes narrativas não tiverem voz, aqueles os ex-cêntricos. Desta forma, o que se faz é apresentar uma nova leitura, sem destruição das existentes, uma vez que estas novas se fazem conscientes do fato de que são também passíveis de desconstrução e reformulação elas mesmas.
Neste ponto, o uso da ironia como redefinição política se faz presente. Uma vez que não há mais padrões intocáveis, e mesmo as críticas dos ex-cêntricos se faz passível de questionamento de quais ex-cêntricos ela representa, o ironia surge como ferramenta retórica desta consciência de lugar dentro da esfera do saber. Novamente, a ironia serve enquanto mecanismo de via dupla e contraditório ao desconstruir a visão estabelecida ao mesmo tempo em que se impõe como limite de consciência para aquele que escreve sobre a sua posição enquanto agente político.

II.2 O fazer literário e a literatura em Elizabeth Costello (5)
Rodrigo Gonçalves Limarglima_@hotmail.com

A escrita é um processo criativo, mas também uma proposta de reorganização da experiência de mundo através da linguagem. Em J. M. Coetzee, esta parece ser a busca do neutro, do impessoal, da presença de uma ausência – proceder que, muitas vezes, leva o processo narrativo coetzeeano a uma aproximação com outros escritores, como Kafka, cuja presença é sugerida pelo próprio autor ao longo da obra Elizabeth CostelloElizabeth Costello, objeto de análise do presente trabalho, aparece envolta numa espécie de nuvem kafkiana – tanto na forma de citação direta, palestra um, como na forte influência do procedimento de escrita, palestra oito. Essa nuvem parece, de alguma maneira, conduzir o fazer literário de J. M. Coetzee em direção às proposições sobre escrita e literatura trabalhadas pelo autor em sua obra. Como escreve o próprio autor: “contar uma história é criar uma atmosfera e sustentar a duração de um estado de sonho induzido” (COETZEE, 2004). Nesse estado, nem o eu-lírico, nem as armas socioculturais importam: o que está em pauta parece ser outra questão, uma espécie de terceiro elemento que se introduz furtivamente e pressiona a literatura até os limites da linguagem. Elemento que traz o impessoal, elemento que alcança o fora, elemento que se coloca como estrangeiro ao sujeito e ao mundo: o neutro, “momento em que a literatura poderia ser agarrada. Mas nesse ponto, ela não seria somente uma escrita branca, ausente e neutra; seria a própria experiência da neutralidade” (BLANCHOT, 2013). Assim, o texto deve ser estudado como escritura, o que implica a compreensão da exigência de que, ao escrever, deve-se “atingir o ponto no qual somente a linguagem age” (BARTHES, 2004). É a linguagem que fala, e não o autor, e a necessidade da impessoalidade faz com que o autor seja suprimido: o que está no texto é a linguagem. Os modos de entrada nesse neutro da língua conferem à literatura um tipo especial de engajamento, talvez, como já disse Derrida, o mais irresponsável deles – o de poder dizer tudo e nada. Desse modo, crê-se na literatura como “potência máxima da linguagem” (DERRIDA, 2014), do excesso, do desejo de não renunciar a nada, da possibilidade de não estar colada a uma única realidade, da impossibilidade, do atravessamento, do não se encontrar fixada num só lugar, do por vir. A busca da literatura dentro deste jogo paradoxal de constante transgressão (profanação) e continuidade (renovação) da linguagem, ou seja, um jogo de contínua inalcançabilidade, de eterno esforço ao irrealizável, de presença-ausente, de neutralidade.
É desse abismo neutro que convém se abeirar para, então, aproximar-se do modo como J. M. Coetzee atualiza, através da escritura, as exigências do fazer literário ao qual se propõe. Esta pesquisa procura perguntar-se de que maneira o autor busca esse ponto de neutralização das estratégias discursivas do romance convencional e transforma o literário numa busca pela experiência essencial da linguagem, numa literatura que carrega em si a própria questão da literatura.
Vale lembrar que essa vertigem ao neutro, apesar do nome, não se coloca no lugar de isenção do tomar posição, e sim permite um lugar fora da imposição de uma verdade única e justificável; uma posição sem “eu”, passível de pertencimento de “todos” e de “ninguém”. Tontura de um discurso sem dúvida permeado pelo fazer político, mas que não se sujeita a ordem desse fazer, ou melhor, um discurso que, assim como a escritura e a literatura, desafia ou suspende a própria lei ao se produzir.

II.3 Memórias de um sobrevivente, o real e a ficção (6)
Tiago Lopes Schiffnertiago_roll@yahoo.com.br

Em 2001, Luiz Alberto Mendes publica Memórias de um sobrevivente, manuscrito de um romance autobiográfico, engavetado por quase dez anos. A narrativa se refere à infância, à adolescência e ao início da vida adulta de um rapaz que vê o banditismo como uma alternativa para contornar os limites econômicos e realizar os seus anseios de liberdade. Luiz Alberto trata das condições de vida de um jovem pobre cujo imaginário persegue o ideal de consumo e de diversão propagandeado nas mídias em desenvolvimento nos anos 60 e 70. Contudo, a sua escrita não se limita a apenas apresentar essa realidade. Há um empenho literário que acompanha e transcende as especificidades temáticas. Por isso, o estudo dos elementos estilísticos esclarece I) o quanto forma e conteúdo andam juntos na composição das Memórias   II) o quanto a análise estrutural pode iluminar traços decisivos da historicidade com os quais o personagem se depara e que definem os impasses do período abarcado pelo texto. Portanto, a finalidade deste artigo é investigar a formalização do relato e como ela incorpora e responde os dilemas enfrentados.

III. 10 de outubro, das 10h às 11h30min — LOCAL: SALA 214

III.1 A caça às bruxas e a política: uma análise comparativa da peça As Bruxas de Salém, de Arthur Miller, e sua adaptação cinematográfica (7)
Luiza Pitrez Gressler e Thamise Silva da Rochaluiza.gressler@acad.pucrs.br;thamise.rocha@acad.pucrs.br

Em 18 de maio de 2017, Donald Trump publicou em sua conta do Twitter que "esta é a maior caça às bruxas à um político na história americana!", aludindo às críticas e acusações sobre seu recente mandato. Buscando se autodefender, a menção à caça às bruxas no discurso de Trump refere-se, de forma distorcida, ao trágico episódio conhecido como os julgamentos às Bruxas de Salém. Realizados entre 1692 e 1693 na então recém fundada colônia de puritanos da Nova Inglaterra em Salém, Massachusetts, o ocorrido resultou na execução de dezenas de inocentes falsamente acusados de praticar bruxaria. A referência alegórica a um dos maiores e mais fatídicos casos de histeria coletiva na história norte-americana fora mais apropriadamente utilizada previamente, nos anos 1950, pelo escritor e dramaturgo Arthur Miller. Por sua suposta ligação ao movimento comunista, Miller e demais profissionais da indústria cinematográfica estadunidense tornaram-se principal alvo das investigações do senador Joseph McCarthy, em sua campanha anticomunista pós-Guerra Fria. A resposta de Miller veio com o lançamento da peça As Bruxas de Salém (The Crucible), em 1953, texto dramático que carrega uma suposta crítica alegórica à perseguição pessoal que o escritor vinha sofrendo. Quarenta e três anos depois, a peça foi adaptada para o cinema, com roteiro do próprio Miller e direção de Nicholas Hytner, com os atores Daniel Day-Lewis e Winona Ryder nos papéis principais. Com base nesta retomada histórica, o presente trabalho busca discutir e comentar, pela literatura comparada, questões relacionadas à adaptação cinematográfica de As Bruxas de Salém, entre elas, se esta transmite a carga alegórica incorporada ao texto dramático original; se é possível distinguir sua intenção subversiva por trás do envolvimento romântico do protagonista e a antagonista. Além disso, questiona-se se a acusação política subtextual pode promover relações alegóricas com o passado, o momento atual e doravante.

III.2 Orgulho, preconceito e representação: o panorama histórico e social da sociedade inglesa de meados do século XIX em Jane Austen (8)
Patrini Viero Ferreirapatyvii02@hotmail.com

As mulheres foram, ao longo das épocas, sujeitadas a duas posições básicas: confinadas ao âmbito doméstico, eram elas as responsáveis pelo bom funcionamento da casa, o que incluía não apenas os cuidados com os filhos e com o marido, mas também os afazeres relativos àquele contexto; de outro lado, por serem vistas como uma espécie de objeto de contemplação, de seu marido e da própria sociedade, tinham o dever de manter uma boa aparência e modos dignos de uma dama. Levando em conta estes percursos culturais e históricos em volta da figura feminina, o presente artigo tem a finalidade principal de reconhecer como a figura feminina é retratada dentro da sociedade inglesa de meados do século XIX, tomando como base a obra da autora Jane Austen, mais precisamente o romance Orgulho e Preconceito (2012). Vale destacar, que a figura colocada em destaque aqui é a protagonista do romance, Elizabeth Bennet, na qual a análise se deterá mais profundamente se comparada às outras personagens mencionadas. Para alcançar o objetivo pretendido, a metodologia consistirá na seleção e análise de fragmentos dentro da obra de Austen, no intuito de aproximar estes trechos dos costumes e valores da época, localizando o texto dentro do tempo histórico e social. A partir destes processos, os resultados obtidos comprovam que Orgulho e Preconceito pode ser encarado como um retrato da sociedade na qual Austen inseria-se, e que os fatores externos influenciaram de maneira profunda na construção do texto, principalmente no que diz respeito à representação do feminino na obra.

III.3 O enclausuramento e silenciamento de Maria do Rosário Imaculado dos Santos em uma sociedade branca, racista, patriarcal e hegemônica (9)
Luciane de Lima Paimlucianeletras15@gmail.com

São diversas as maneiras como a mulher foi silenciada pela sociedade e pela democracia patriarcal, em séculos passados, e é assustador como ainda tentam silenciá-las. Seja na política, na cultura ou na história, sempre tentaram calar o feminino. Muitas vezes, assim como no restante das relações sociais, na literatura as restrições às mulheres acontecem de forma explícita e não explícita. São inúmeras as obras que apresentam a mulher como um objeto, e não como um sujeito. Entretanto, na literatura contemporânea, são muitos os autores que apresentam o feminino como um sujeito. Em todas as suas obras, Conceição Evaristo mostra como a mulher era e ainda é representada na sociedade, no ambiente familiar e na academia. A autora, em Insubmissas Lágrimas de Mulheres, dá voz as suas personagens, as quais são todas negras, deixa-as contarem suas histórias vivenciadas. Por ter um vasto elenco feminino, para este estudo nos concentramos em analisar a vida de Maria do Rosário Imaculada dos Santos, personagem que conta como viveu sem voz desde o dia que foi roubada dos pais. Desta forma, a ideia principal desse estudo é identificar como a personagem escolhida é silenciada e privada da vida social, devido aos padrões patriarcais impostos pela sociedade. Metodologicamente, foram analisadas passagens do conto que apresentam a vida enclausurada e silenciosa de Maria do Rosário. Assim, ao final da análise, identifica-se que a personagem escolhida foi vítima de uma democracia patriarcal e branca que não dava voz, espaço e oportunidades aos negros. Como nos apresenta Aristóteles, em Política,  antigamente, a sociedade era dividida por homens livres e escravos, e por não terem cidadania as mulheres se juntavam aos negros em questão de ausência de direitos. É visível que a mulher é sempre reduzida a nada, porque vejamos: a sociedade era dividida em homens livres e escravos; os sem cidadania eram os negros, as mulheres e as crianças. Contudo, os negros poderiam obter a alforria, logo seriam livres. As crianças se fossem homens, iam crescer e adquirir cidadania. Mas e as mulheres? Independentemente da situação as mulheres continuariam sem voz e sem direitos. E outra questão inquietante: Se a mulher branca já era silenciada por causa do gênero, o que restava para a mulher negra? Nada? Ela simplesmente não faria parte da sociedade, não existiria? Sim, foi essa a vida de Maria do Rosário, uma vida quase sem existência.

IV. 10 de outubro, das 16h às 17h30min — LOCAL: SALA 205

IV.1 Negro e pronto: a representação do negro na poética de Cuti (10)
Jacqueline de Almeida, jacquelinealmeida55@yahoo.com.br

A presente comunicação se propõe a analisar a representação do negro na escrita poética de Luiz Silva, o Cuti. Considerado um dos mais destacados intelectuais negros da contemporaneidade, Cuti, no exercício de sua poesia, tem proposto uma representação da negritude que se contrapõe às imagens negativas e estereotipadas construídas pela tradição literária brasileira: o cânone. Tomado por uma consciência étnica afrodescendente assumida, o escritor de Ourinhos (SP) rompe com o silêncio do racismo, nas suas mais variadas formas, e produz um discurso no qual emerge um enunciador que se quer ou se assume negro. Assim, apoiado num ponto de vista interno e com uma postura combativa, política e ideológica, Cuti também pressupõe a presença de um leitor/interlocutor negro. Diante disso, oferece ao seu leitor ideal uma escrita poética empenhada com a releitura da história e da memória coletiva do afro-brasileiro. Partindo da perspectiva teórica do campo dos Estudos Culturais em Educação e dos Estudos Étnico-Raciais, este estudo, primeiramente, examina o conceito de literatura afro-brasileira ou negra e os critérios de configuração desta literatura, com ênfase no ponto de vista enunciativo: do sujeito étnico. Num segundo momento, verifica-se de que modo se constrói a representação do negro nos respectivos poemas “Sou negro” (1978), “Trincheira” (2002) e “Negroesia” (2007), ambos relacionados na Antologia de Poesia Afro-brasileira: 150 anos de consciência negra no Brasil, organizada por Zilá Bernd (2011). Uma conclusão preliminar deste estudo aponta para uma representação positiva e valorizada do negro, além de um discurso marcado por um sentimento de resistência frente às feridas do passado e à discriminação racial do presente. Também há que considerar que a literatura produzida por escritores afro-brasileiros, aqui representada por Cuti, visa atuar no processo de (re)construção identitária do sujeito (o leitor) negro, bem como na conscientização e no resgate de sua autoestima.

IV.2 “Aquela coisa de sempre”: metodologia crítica e continuidade histórica (11)
Giovani Buffon Orlandinigiovani.b.o@hotmail.com

Ao preparar o terreno para a leitura crítica dos romances maduros de Machado de Assis, Roberto Schwarz estabeleceu as bases do impasse enfrentado por romancistas brasileiros em meados do século XIX: adequação das tradições formais narrativas importadas do mundo burguês europeu a uma realidade social de nação periférica fortemente marcada pela herança do período colonial, sobretudo pelo estatuto da escravidão e seus desdobramentos perversos. O impasse se estabeleceu, portanto, na incompatibilidade ideológica existente entre o modelo estético e a realidade local decantada, gerando emSenhora (1874), obra elencada pelo crítico como exemplo do fenômeno, incongruências formais que dão notícia da própria incompatibilidade em si, com seus ecos na forma, bem como da lógica local de funcionamento social. Na assertiva canonizada por certa tradição crítica brasileira, trata-se do argumento que aponta o quanto “o revezamento de pressupostos incompatíveis quebra a espinha à ficção” (SCHWARZ, 1992). Este trabalho propõe um deslocamento histórico desse achado crítico, baseando-se na suspeita de que esse impasse acompanhou por longa data nossos romancistas que, como Alencar, demonstraram vocação realista para retratar questões nacionais. Assim, trata-se de verificar a validade ou não do achado crítico de Schwarz sob a luz de um objeto literário e de um contexto diversos, a saber, o romance Jubiabá (1935), de Jorge Amado, gestado no ambiente de polarização ideológica e de modernização conservadora dos primeiros anos do primeiro governo Vargas (BUENO, 2006). Ainda que os referentes se alterem substancialmente – o modelo importado de romance abarcado por Amado não é o mesmo de Alencar, bem como o Brasil à beira do Estado Novo não se orienta sob as mesmas bases do Brasil do Segundo Império, para ficarmos naquilo que e mais evidente – parece existir certa similaridade entre as obras em suas dinâmicas de representação do tempo histórico e da realidade local que, uma vez levadas a cabo as mediações exigidas pelo deslocamento temporal, atestam algo mais do que a perenidade do método crítico: a não superação de embaraços políticos e sociais a despeito das mudanças institucionais ocorridas. O intuito desse trabalho é, desse modo, delinear as mediações cabíveis para a verificação da hipótese investigativa acima exposta, tomando como referente uma leitura crítica dessas obras em seus contextos específicos a partir do prisma metodológico estabelecido por Roberto Schwarz.

IV.3 As mulheres no espaço da fábricaParque industrial, de Patrícia Galvão (12)
Bárbara Loureiro Andreta e Rachel Loureiro Andretabarbaraandr@hotmail.com; rack_and@yahoo.com.br

O livro Parque industrial, de autoria de Patrícia Galvão (conhecida como Pagu), que além de escritora era militante política, foi elaborado em 1932 e publicado em 1933, sob o pseudônimo de Mara Lobo - por exigência do Partido Comunista. Parque industrial foi redigido em um período marcado pelas primeiras mudanças no que se refere ao fomento da industrialização no país, pela passagem de uma economia agrário-exportadora para outra, a urbano-industrial. A obra denuncia a exploração e opressão a que os trabalhadores e, especialmente, as mulheres, estavam submetidas nas indústrias têxteis de São Paulo, no início da industrialização no país, período em que os trabalhadores ainda não estavam segurados pelas leis trabalhistas e que, nesse contexto, também não tinham nenhum respaldo no que diz respeito a direitos humanos no ambiente laboral. Tendo como pano de fundo as questões referentes à historiografia do trabalho, este breve estudo pretende fazer uma contextualização histórico-social do espaço onde as ações se passam e, assim, discutir as precárias condições de trabalho a que as mulheres estavam submetidas, bem como as tentativas de resistências surgidas. Nesse aspecto, as discussões terão como foco as personagens Rosinha Lituana, Otávia e Corina, uma vez que essas três personagens são representativas das mulheres operárias no início da industrialização no Brasil. Rosinha Lituana era estrangeira, operária com aguda consciência de classe e militante do Partido Comunista – que tenta, em seus curtos intervalos, disseminar as ideias do partido entre as colegas de trabalho (e, por isso, é considerada “agitadora”); Otávia, trabalhadora também envolvida com o movimento operário, que toma a frente do movimento sindical, e Corina é a personagem que representa a face mais cruel da vida das trabalhadoras – aprendiz de costureira, jovem e mulata, iludida por uma promessa falsa de casamento, acaba engravidando, caindo na prostituição e, por fim, termina seus dias na prisão.

V. 11 de outubro, das 11h30min às 13h — LOCAL: SALA 205

V.1 Vozes narrativas em contra-canto: a literatura de testemunho na ficção brasileira pós-64 (13)
Abilio Pacheco de Souzaabiliopacheco@gmail.com

A literatura produzida no século XX, que apresenta pontos de contato com a realidade histórica e se distancia de algum modo do ficcional, apresenta duas tendências de produção e de aparato teórico: uma produzida a partir de relatos como os de Primo Levi e de Anne Frank, tematizando a experiência traumática dos campos de concentração, da Shoah e dos resultados do totalitarismo Nazista de um modo geral; e a outra produzida a partir de relatos coletados ou coligidos a partir da violência contra populações ou grupos não-hegemônicos na América Latina ou mais precisamente na América Hispânica, de que é exemplo quase paradigmático o livro de Rigoberta Menchu. Embora possa haver pontos de contato entre essas tendências, a distância é tão significativa que o Professor Márcio Seligmann-Silva aponta para a intraduzibilidade dos conceitos: Zeugnis (em língua alemã) e Testimonio (em língua espanhola). Seligmann-Silva enfatiza ainda que o testemunho (seja Zeugnis, sejaTestimonio) é uma forma de manifestação da literatura do século XX, que se situa na cisão entre o ficcional e o real, e é um discurso para o tribunal da História. Boa parte da narrativa literária romanesca produzida no Brasil, notadamente, na segunda metade do século passado, ora se aproxima de uma tendência, ora da outra. Consequentemente ora demanda uma leitura crítica ora demanda outra. Há, entretanto, algumas obras produzidas sobre a ditadura militar que nos parece escapar destes dois polos exatamente por se afastar de um aspecto muito caro à literatura testemunhal (hispânica ou alemã): a verdade narrativa empírica. Em seu lugar, algumas narrativas optam por mascaramento ficcional de um narrador letrado em contraponto a um discurso narrativo com “el efeito de oralidad/verdade” (Achugar). Nesta comunicação, procuramos debater este aspecto com vistas a se pensar em uma Literatura de Testemunho (em português) considerando a produção literária romanesca sob e sobre a Ditadura Militar de 64.

V.2 “Para proteger os justos da justiça”: política, testemunho e ficção em Redoble por Rancas (14)
Rodrigo Cézar Diasrodrigocezardias@gmail.com

O romance Redoble por Rancas, publicado por Manuel Scorza em 1970, constitui-se, segundo afirma o autor em nota inicial, enquanto “crônica exasperantemente real de uma luta solitária”. A obra, que integra uma pentalogia intitulada A guerra silenciosa, dá forma literária a um levante de campesinos peruanos de algumas aldeias quase desconhecidas contra as forças militares a serviço da oligarquia local e da mineradora multinacional Cerro de Pasco Corporation. Ao fim da mesma nota, o autor acrescenta que alguns nomes foram modificados quando da construção do romance com o intuito de “proteger os justos da justiça”. A obra organiza-se em torno de dois polos principais, que se cruzam no decorrer do romance. O primeiro deles é atravessado pela cerca da Cerro de Pasco Corporation, que transpassa o caminho dos pequenos pecuaristas ranquenhos, cercando pastos, montanhas e lagos e impedindo que os produtores pudessem alimentar suas ovelhas no campo outrora comunal. O segundo polo consiste na tentativa malograda de assassinato do latifundiário e juiz Don Montenegro por Héctor Chacón, uma liderança campesina da aldeia de Yanacocha que visava dar um ponto final aos desmandos do tirano local. Posto isso, o presente trabalho articula-se em duas frentes. A primeira delas consiste na investigação acerca dos imbricamentos entre estética e política e literatura e testemunho presentes no romance de Scorza, observando o tratamento dispensado à representação literária dos personagens comuneiros e o modo como sua voz é materializada formalmente na narrativa. Para tanto, são mobilizadas as leituras de Jacques Rancière em A partilha do sensível e no ensaio “O efeito de realidade e a política da ficção”, bem como a proposta de alargamento para o conceito de testemunha proposto por Jeanne Marie Gagnebin em Lembrar, escrever, esquecer. A segunda frente de trabalho consiste, por sua vez, em observar como esses personagens são confinados para além da cerca e, posteriormente, como muitos deles são exterminados, pensando-os como pessoas vistas pelo poder como “matáveis”, partindo, nesse sentido, do conceito de homo sacer, conforme a perspectiva de Giorgio Agamben.

V.3 Sebald e o peso ético-estético da literatura de restituição (15)
Davi Alexandre Tomm, davitomm@yahoo.com.br

Em sua fala na abertura da Literaturhaus, em Stuttgart, o autor alemão W. G. Sebald finaliza se perguntando para que serve a literatura? E responde, citando Hölderlin, que a visão sinóptica que algumas linhas do poeta davam sobre a morte eram ao mesmo tempo ofuscadas e iluminadas pela memória dos que sofreram as grandes injustiças: “There are many forms of writing; only in literature, however, can there be an attempt at restitution over and above the mere recital of facts, and over and above scholarship” (ênfases minhas). Essa tentativa de restituição é o ponto central da obra de Sebald, que trata de resgatar a memória daqueles que já se foram e que sofreram por causa das catástrofes e destruições de nossa história. No entanto, essa memória é resgatada através da mediação de um narrador em primeira pessoa, muito identificado com o próprio autor, e que, portanto, parece também ser acompanhado de um peso que o impele a uma outra restituição: a com o seu passado – tanto à nível de uma identidade, quanto no que toca a uma restituição de uma literatura passada. Esse projeto de uma literatura de restituição se vê às voltas, assim, com o um problema ético e estético de escrever sobre aquilo que outros viveram, ou seja, o narrador (e, em certa medida, o autor a ele identificado), se torna mediador dessas vozes, que não tiveram a chance de, elas mesmas, relatarem sobre suas vidas. Esse problema ético-estético é colocado pelo próprio Sebald como o grande dilema da ficção, pois passa por um resgate e ao mesmo tempo remodelação de uma estética anterior, devendo se ter respeito e fidelidade às histórias verídicas por um lado, mas por outro, não se prendendo a um mero realismo, devendo haver pequenas decolagens para a esfera do imaginário, fantasioso. Também o narrador ao falar de sua escrita, se coloca diante dessa mesma dificuldade, tratando da escrita como um negócio questionável, cujo peso da responsabilidade ética a torna quase uma atividade patológica com o qual o autor nunca sabe ao certo porque não consegue dela se livrar. Sendo assim, o presente trabalho trará à tona essas reflexões sobre o trabalho do narrador-autor diante do peso da responsabilidade imposta por uma literatura da restituição, que para dar essa voz aos mortos, precisa repensar questões éticas-estéticas fundamentais para a literatura.

VI. 11 de outubro, das 16h às 17h30min — LOCAL: SALA 206

VI.1 “Ilha das Flores”: uma leitura da imagem através de Jacques Rancière (16)
Marinice Argenta, mariniceargenta@gmail.com

Jacques Rancière em seu livro O Espectador Emancipado (2010), principia o capítulo intitulado “A imagem intolerável”, com uma pergunta: “Que faz com que uma imagem seja intolerável?” (ibidem, p.125).  Por conseguinte, aponta-nos questionamentos atrelados a essa discussão, ou seja, quais são os traços característicos que fazem com que olhemos para determinadas imagens e experimentemos alguma dor ou mesmo indignação? Por outro lado, o de quem produz a imagem: torna-se um ato plausível construir estas imagens e ofertá-las a outras pessoas?. Partindo destes questionamentos, toma-se como exemplo o premiado curta-metragem brasileiro de Jorge Furtado, intitulado Ilha das Flores (1989), o qual retrata a vida de pessoas em situação de extrema pobreza que recorrem ao lixo como fonte de subsistência alimentar. Para esse fim o cineasta nos apresenta um encadeamento de ações, partindo da produção de tomates até seu destino final: o depósito de lixo, no qual esses tomates serão despejados e servirão de alimento para seres humanos. É nesse foco que se concentra o estudo ora apresentado, isto é, nessa relação entre a “imagem intolerável” (ibidem, p.125) de Rancière e o filme de Furtado, examinando os expedientes da realidade apresentados no curta que corroboram para a imagem intolerável, ao mesmo tempo em que se discorre em uma leitura simbólica dessas imagens, bem como a sua eficácia para a crítica social.

VI.2 “Vai ter luta?”Aquarius e algumas narrativas sobre o cenário político brasileiro no pré golpe de 2016 (17)
Octávio Augusto Linhares Garcia Reisoctavio_mb_rs@hotmail.com

Durante o processo eleitoral de 2014, a crise econômica que atualmente assola o Brasil já se anunciava dentro do debate político, que por sua vez, dava sinais do esgarçamento do pacto conciliatório idealizado pelo Partido dos Trabalhadores em seus primeiros mandatos no executivo federal. Tais sinais tensionaram o debate ao redor das eleições presidenciais, levando parte do eleitorado de Dilma Rousseff a apostar no que se chamou de uma “guinada à esquerda”. Frustrando tais expectativas, Dilma, ao iniciar seu segundo mandato, acabou por adotar parte da agenda de seus opositores derrotados nas urnas, o que, no entanto, não a impediu de ser vítima de um golpe de estado. O pacto conciliatório chegou ao fim, mas ao contrário do esperado, sua ruptura deu-se à direita.  É em meio ao tumultuado processo de afastamento de Rousseff que é lançado o longa-metragem Aquarius, de Kleber Mendonça Filho. A estreia do filme no festival de Cannes, inclusive, foi marcada, por protestos de sua equipe, que usou a oportunidade para denunciar o golpe de estado em curso no Brasil.
A protagonista de Aquarius, Clara, guarda marcantes semelhanças com Dilma. Mulher forte, que superou um câncer, a personagem interpretada por Sônia Braga apresenta uma obstinação beirante à teimosia. Seu desejo de manter-se proprietária de um apartamento no Edifício Aquarius bate de frente com os interesses de uma empreiteira local, personificados na figura de Diego, neto do dono da construtora e responsável pelo projeto de um novo edifício. Sofrendo pressões articuladas pelo jovem engenheiro, Clara mantém firme sua posição contrária ao projeto da empresa, e consegue, ao final, que seus interesses prevaleçam. Aquarius, em sua estrutura, parece mimetizar posições e crenças presentes no cenário político brasileiro. Clara, ainda que pertencente à elite, representa um setor progressista da classe dominante brasileira. Diego e seu avô, por outro lado, são seus adversários, representando as elites tradicionais, patrimonialistas e reacionárias. Não obstante o jogo sujo dos representantes do capital, Clara consegue que seus interesses prevaleçam graças à boa vontade e senso de justiça de dois trabalhadores que a procuram para denunciar uma das estratégias ilegais da construtora.
No processo histórico brasileiro, no entanto, a aliança de classes figurada no entrecho de Aquarius não acontece. Dilma é derrubada diante de uma classe popular que não se mostrou disposta a defender um governo que não mais parecia representar seus interesses.

VI.3 Desterro e passagem do tempo em A cidade onde envelheço (2016), de Marília Rocha (18)
Amanda Lauschnerlauschner.amanda@gmail.com

Francisca é uma portuguesa que mora em Belo Horizonte há um ano. Quando sua amiga Teresa chega, há conflito de perspectivas e pouco espaço. Para além das incertezas cavalares e dos enquadramentos claustrofóbicos, o longa-metragem é colorido por um senso de humor pueril. Elas oscilam entre sentir falta de Lisboa e rejeitá-la. O desenraizamento revela um silêncio trágico, que lembra o desterro. Não um desterro judicial, mas aquele promovido por um sutil porém constante impelimento político e econômico de forças externas.
De modo geograficamente reverso, podemos comparar A cidade onde envelheço (2016) com o longa-metragem Terra Estrangeira (1995), de Walter Salles, o qual narra a tentativa de Paco e de Alex de se estabelecerem em Portugal no período da era Collor. Em comum entre os filmes, há uma constante ânsia por liberdade acompanhada de cansaço e de saudade. Contudo, com menos peripécias no roteiro, A cidade onde envelheço é um filme cujo sentido se espalha como mancha, não como linha, em um tempo irremediavelmente líquido.
O desterro é uma chave de sentido que perpassa muitas obras do cinema contemporâneo. A história de refugiados em Deephan (2015), de Jacques Audiard, é um exemplo radical disso. No Brasil, em escalas de desterro incomparavelmente menores, filmes como O som ao redor(2013) e Aquarius (2016) revelam um mesmo mal-estar perante a reconfiguração do espaço urbano e o por vezes compulsório desenraizamento que dela oriunda. Gentrificação e ondas migratórias aparecem como nuances mais ou menos concentradas de uma mesma tendência. Em Eu, Daniel Blake (2016), vemos que o massacre da bolha imobiliária é um fenômeno global que não acabou na crise de 2008, e que certamente não se limita a Belo Horizonte.
No filme, tanto o espaço quanto o tempo se mostram finitos. Se hoje é proibido morrer, envelhecer é um convite ao crime. É permitido falar em ‘amadurecimento’, não em ‘envelhecimento’. É permitido chamar velhos de ‘idosos’ e dizer que a velhice é a ‘melhor idade’. ‘Envelhecer’ é um verbo tabu: disso vem a força do título do filme. O cinema, com grande poeticidade, reforça que as mulheres não devem passar dos 26 anos. Em outras palavras, envelhecer em paz é um direito ainda a ser conquistado. O espaço psíquico do envelhecer é um lugar que todos precisamos — e merecemos — encontrar.